Uma Nota Sobre o Edital do Sistema de Transporte Coletivo por Ônibus (STCO) de Salvador

Ihering Guedes Alcoforado
11 min readDec 14, 2020

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IHERING GUEDES ALCOFORADO

Nosso ponto de partida é que a licitação da Concessão do sistema de transporte coletivo por ônibus (STCO) é uma transação que envolve um contrato que deve ter uma duração e que esta é estabelecida a partir de um critério técnico. A transação contratual envolve a transferência parcial ou total de direitos e obrigações do Concedente para o Concessionário. E, tem com finalidade a prestação de um serviço público essencial e politicamente sensível. O arranjo contratual por meio do qual esta transferência é efetivada podem assumir muitos formatos e, estes arranjos determinam em boa parte o sucesso ou fracasso da iniciativa no que se refere a sua eficiência, eficácia e efetividade. Ou seja, o Edital toma como premissa um problema e propõe uma solução. A seguir trato da solução.

Em função do exposto trato na primeira parte das dimensões políticas associadas ao enquadramento e equacionamento do problema decorrente do tipo de remuneração. Na segunda parte trato dos fundamentos dos contratos: inicialmente introduzo os diferentes mecanismos de remuneração i) contrato de renda fixada, iii) contrato de renda compartilhada, iii) contrato por remuneração variável e, da iv) outorga onerosa, depois recupero o legado do FUNDETRANS, para mostrar as possibilidades que fornece a construção de uma política que reflete a complexidade do meio ambiente associada a interação entre os diferentes setores (transporte, habitação), ao tempo que dar margem para o desenho de políticas inclusivas, a exemplo da Tarifa Zero no Governo Erudina. Na terceira parte me debruço sobre o Edital, para tratar das implicações da outorga onerosa, tendo como pano de fundo os problemas associados a delegação do Munícipio aos concessionários: a) a seleção adversa e b) o risco moral, e, mostro que a modelagem do contrato, quando visto da perspectiva acima, configura um mecanismo odioso de exclusão. Na conclusão sugiro a necessidade de aprofundar-se a discussão de forma a construir-se de forma dialógica a solução para o problema em tela.

I. ENQUADRAENTO E EQUACIONAMENTO DA SOLUÇÃO DO PROBLEMA

A solução proposta é tomada como dada e toma-se como premissa o avanço que é a iniciativa de licitar a concessão, e, por dedução o contrato gerador de direitos e obrigações. De forma que a restringir a discussão a pontos específicos do contrato, a exemplo do critério de escolha da concessionaria e do próprio período de concessão. Com relação a este último aspecto, a Nota Técnica que lhe foi dedica se resume a apresentação das tabelas sem qualquer texto de apoio, ou mesmo a memória de cálculo que facilite a avaliação por um profissional não especializada, reduzindo desta forma a transparência das informações e dos procedimentos.

Com isto se revela uma orientação que reduz o debate a uma questão de auditagem da analise de fluxo de caixa, quando na verdade temos uma questão complexa que envolve tanto a estrutura do contrato, inclusive o tipo concessão, com o estabelecimento dos direitos e obrigações que estabelecerão as regras do jogo para o sistema de transporte nas próximas décadas. No entanto, a agenda limita-se a uma simulação baseada num exercício algoritímico, ou seja, dado as condições contratuais, as quais não se toma como dadas, o fluxo de caixa é este, e, em consequência o período de concessão é tal. De forma que, assim posto, resta apenas auditar a base de dados e “rodar” de maneira a replicar o resultado no qual o Prefeitura apoia o período de concessão.

A questão associada a concessão dos transportes público coletivo por ônibus de Salvador é uma política multível que se manifesta no âmbito da polítca governamental (policy), da política competitiva (politics) e da política constitucional (polity).

Do lado, da politica governamental (policy) impede que se recupere e instrumentalize à experiência contratual na área de transportes públicos registrada na literatura especializada, que aponta para uma modelagem diferente da posta como “a” alternativa. Além de não considerar a própria experiência do Municipio Salvador no âmbito dos contratos em tela, marcada por inciativas elogiáveis, a exemplo do FUNDETRANS cujo estrutura e desmonte e descrito no ANEXO I (em elaboração), é mais uma das muitas operações condenáveis, que marca a história dos transportes público de Salvador.

Na esfera da politica (politics) temos uma questão explosiva, haja vista o número de revolta populares em Salvador motivada pelo sistema de transportes e, cuja motivação tende a se agravar dado o aumento continuo e sustentado do gasto das famílias com o transporte. Esta tendência é bem registrado na série da POF-IBGE cuja última pesquisa publicada (2013) registra uma convergência em torno de 15% do orçamento familiar das famílias dedicado as despesas com transportes (15% e com alimentação (15 %), mas com tendências divergentes , ou seja, o percentual com alimentação cai e o percentual com transporte aumenta os motivos de revoltas e, no seu rastro as condições de possibilidades de novas revoltas, capaz de reduzir a cinzas a reputação de um governo.

Diante desta realidade, a preocupação não pode se resumir na gestão de um fluxo de caixa (o que não significa que o fluxo não levado em consideração), já temos algo bem mais complexo, isto é um fluxo de serviços essenciais que, em Salvador tem-se revelado, politicamente problemático e socialmente explosivo.

Por fim, o mais grave é que tal estratégia abdica das possibilidades embutida no âmbito da política (polity), ou seja das inovações institucionais que criem novos ambientes institucionais e novos arranjos organizacionais ajustados a problemática e aos desafios em tela. Apenas a título de exemplo dessas possibilidades, chamo atenção para as inovações institucionais e organizacionais em curso nas grandes metrópoles do mundo e que tem uma expressão emblemática na experiência de Hong Kong, onde uma organização hibrida opera o sistema de transporte público de passageiros como uma atividade que integra verticalmente o negócio do transporte e o negocio imobiliário, configurando o modelo chamado “rail plus property”, por meio do qual se efetiva a captura as externalidades positivas geradas pelo sistema de transportes, equacionando em sua totalidade os problemas inerentes ao financiamento, não só da infra estrutura de transportes publico coletivo de massa, mas também da sua operação.[1] Atente-se que possibilidades desta natureza poderão ser eliminadas com as novas regras estabelecidas por um contrato no qual o poder municipal abica do protagonismo no âmbito da política.

E como se não bastasse também apresenta indícios de falhas congênitas no contrato, ou seja, não leva devidamente em conta o entendimento vigente no âmbito da Economia dos Contratos, que fornece os subsídios para enquadra e equacionar de forma antecipada os problemas inerentes aos conflitos de interesses entre o Agente e o Principal.

Em resumo, o bom senso indica a necessidade de ampliar e aprofundar a discussão tendo como referência os Institutos jurídicos que que vertebram o contrato em tela, assegurando um conjunto de direitos para o Concessionarios que no futuro poderão ir de encontro aos interesses não só dos usuários, mas do próprio poder municipal, ao limitar seu protagonismo no setor. As correções de tais distorções serão sugeridas a partir da evidências que por sua natureza recorrente já foram objeto de formalização teórica, a exemplo da Teoria do Agente Principal.

Isto porque, estamos diante de evidências que o que estar em jogo, vai muito além dos direitos de apropriação privadamente do fluxo de caixa gerado pela prestação dos serviços de transportes público coletivo de passageiros, já que envolve, não só a abdicação do protagonismo do Poder Público Municipal, mas também a limitação da sua capacidade de implementar de forma exitosa os novos mecanismo de financiamento da infra estrutura de transportes e, assim assegurar que Salvador ande com suas própria pernas,em função de uma distorção na institucionalização da relação do Agente (Concessionário) e o Principal (Concedente).

Nesta direção introduzimos algumas contribuições da Economia dos contratos de concessão de infraestrutura e em especial dos transportes, as quais nos oferecerá os meios para evidenciar alguns problemas modeláveis a partir da Teoria do Agente Principal.

II. OS FUNDAMENTOS DO CONTRATO

Uma observação panorâmica nos contratos de transporte público no Brasil nos revela quatro formas canônicas de contrato, as quais trazem no seu bojo diferentes mecanismos de remuneração: i) contrato de renda fixada, iii) contrato de renda compartilhada, iii) contrato por remuneração variável e, da iv) outorga onerosa, a partir das quais se pode fazer distintas aproximações ao contrato posto no edital e, assim evidenciar que estamos prestes a promover mais um retrocesso da ótica da política dos transportes.

a) A Experiência de Salvador

A instrumentalização dessas formas canônicas foi feita em Salvador, cidade que apresenta uma rica experiência na operação de um mix de contratos de transporte público coletivo de passageiros. Por exemplo, temos muito o que aprender com o período de vigência do FUNDETRANS, quando o Governo municipal estabeleceu uma relação contratual hibrida com os Permissionários. O Poder municipal operava de forma integrada dois tipos de contratos canônicos na sua relação com os Permissionários, um que estabelecia o compartilhamento da receita (o contrato de renda compartilhada) e o outro que especificava os critérios de remuneração (o contrato por remuneração variável).

O contrato de renda compartilhada era manifesto na determinação que estabelecia a distribuição da receita do sistema entre os permissionários operadores do sistema (88%) e a Prefeitura (12%), configurada como uma receita para-fiscal.

A fração destinada a Prefeitura (12%) toda ela era destinada ao Fundo destinado ao financiamento da parte do Sistema de Transportes de responsabilidade do Munícipios, a exemplo das estações e vias. Tais recursos assegurava uma fonte estável de recurso para o exercício da sua titularidade no âmbito da política de transportes público coletivo de passageiros. A distribuição da parte destinados operadores do sistema (88%) era mediado implicitamente, por um os contratos ancorado na remuneração variável, ou seja, o operador recebia em função dos quilômetros rodados, independente dos passageiros transportado.

Com esta forma de compartilhamento e distribuição da receita a prefeitura retinha o poder de definir as linhas e rotas, o que lhe assegurava as condições de possibilidade de definir a abrangência das linhas, a partir de critérios outros, que o de simples rentabilidade das linhas no curto prazo.

Em outras palavras, o mix de contratos, referido acima assegura ao poder municipal a titularidade do controle efetivo do sistema transporte e, com se credencia para ampliar seu controle das áreas de expansão da cidade, que tem no transporte, entre outros, um fator determinante para a incorporação urbana das áreas necessária urbana da cidade. Este controle, o da oferta de infra estrutura viária e sua operação l é hoje, talvez o mais importante mecanismo que o poder municipal dispõe, quando se leva em conta as possibilidades em latência no Novo Código Cível e no Estatuto da Cidade, que devidamente instrumentalizados, fundamenta novas de possibilidades de financiamento do sistema a partir da apropriação das externalidades positivas geradas por seus investimentos em infra estrutura, em especial na infra estrutura de transporte necessária a incorporação de novas áreas.

Atente-se que manutenção dessa titularidade é condição sine qua non para que se possa replicar em Salvador a experiência em curso em várias grandes metrópoles do mundo que estão equacionando, em boa parte, os problemas de financiamento da sua infraestrutura de transportes de massa por meio da simples apropriação dos benefícios gerados pelos seus investimentos em infraestrutura (value capture), o que é viabilizado do ponto de vista institucional se ele tiver o poder discricionário de determinar a logica de operação do sistema de transporte, já que a infraestrutura institucional é pisponível desde que entrou em vigência o Novo Código Civil com o retorno reformatado, do velho instituto do Direito Colonial, o Direito de Superfície, no qual se assentou a formação urbana original de Salvador, já que e assegurava o acesso as terras edificáveis de propriedade da Confrarias da Igreja.

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Apenas a exemplo de ilustração dessas possibilidades que precisam ser preservadas com a titularidade do Poder Municipal, chamo atenção para duas experiências que precisam ser avaliadas, tendo como pano de fundo a nossa experiência em Salvador, para que possamos avançar na compreensão das possibilidades embutida na modelagem contratual subjacente ao FUNDETRANS.

De um lado, temos a experiência socialista na área de transportes na Gestão Erundina na Prefeitura de São Paulo, a qual por meio do que chamaram MODELO DE MUNICIPALIZAÇÃO, fundado num contrato por remuneração variável, implantou o Passe Livre em regiões periféricas de baixa renda com grave problema de acessibilidade, de forma a integra-las ao sistema de transporte público convencional. Do outro lado, temos a experiência empresarial de Hong Kong, a qual por meio do MODELO “RAIL PLUS PROPERTY” fundado no “value capture”, o que viabiliza por meio de uma organização híbrida que opera dois negócios que no Brasil nunca são integrados na mesma organização. Na experiência aludida, a Concessionaria, uma empresa cujo principal acionista é o Governo, mas com gestão privada fundada em acordo de acionistas, opera um sistema de transportes de transporte publico coletivo de massa integrado a uma incorporadora imobiliária, por meio do que assegura a internalização das externalidades positivas geradas pelo setor de transportes (value capture), mas só possível de ser apropriada pelo setor imobiliário. Este mecanismo resolve o problema de financiamento do setor de transportes, tanto no âmbito da infra-estrutura como da operação do sistema. Estas possibilidades, como muitas outras, em sendo estabelecido o contrato nos termos do Edital, estão fora do escopo das possibilidades do Poder Municipal por décadas.

III. Os Fundamentos da Proposta do Edital

Nosso ponto de partida para fazer uma primeira aproximação ao contrato de concessão é que ele transfere um feixe de direitos (sempre exigidos) e obrigações sempre possíveis de não cumprimento) ao Concessionários, o que estabelece uma relação tensa e fonte permanente de desentendimento. A literatura da Economia dos Contratos registra e trata de forma recorrente o problema da delegação, eo qual configura duas questões: i) seleção adversa e ii) risco moral.

As Implicações Contratuais da Aversão aos Riscos

Um contrato de concessão de infra estrutura é uma pratica usual no mundo dos negócios e dos estudos econômicos e, em ambos universos entende-se que tal relação contratual é, em principio, marcada por conjuntos de problemas e de decisões. O primeiro é diretamente associado i) a duração dos contrato e ii) a gestão dos contratos.

A duração dos contratos é uma decorrência da natureza dos ativos e do consequente tempo de maturação dos investimentos: quanto mais especifico e mais longo for o prazo de maturação, maior será a duração da concessão e suas garantias, medidas que visam contornar a aversão ao risco do agente privado.

Como relação ao período do contato, como no caso em tela a maior parte dos investimentos não são específicos e, portando facilmente reversível, enquanto que o tempo de maturação é curto, já que pode ser associado a vida útil dos ônibus, a doutrina econômica indica que, do ponto de vista da natureza econômica dos ativos, contratos que tenham a duração aproximada do ciclo dos investimentos, ou seja, em torno de 10 anos.

Já com relação a eficácia e efetividade dos contratos em tela, entendo que sua performance é decorrente do alinhamento ou não dos interesses do Agente (Concessionária) e do Principal (Concedente), o que vai determinado pelo grau de “assimetria de informações”. Essa falha de mercado” é fonte eterna de problemas, os quais a literatura tende a enquadrar em dois tipos: i) o problema da “seleção adversa” e ii) o problema do “risco moral”.

O problema da seleção adversa estar associado a qualidade do serviço contratado, o qual pode ser oferecido com diferentes padrões de qualidade, e, submetido a avaliações tanto objetiva como subjetiva, o que resulta numa situação que favorece os desentendimentos sobre o que foi efetivamente contratado. E, como qualidade implica custos, o concessionário é inclinado a oferecer o serviço de menor qualidade que atenda as exigências contratuais. Em função disso é necessário se estabelecer previamente não só critérios que definam o serviço que deverá ser prestado, mas também que se estabeleça de penalização e premiação de forma a alinhar os interesses dos agentes atados contratualmente numa relação marcada pelas assimetrias de informações.

Já o problema do risco moral estar vinculado a delegação de poder pelo Principal ao Agente e, manifesta-se quando o poder delegado pelo Principal é exercido pelo Agente para maximizar sua função utilidade e, não a função utilidade do Principal. Uma possível manifestação magnificada deste problema estar embutido no contrato com a delegação a concessionária da obrigação da realização dos estudos básicos e a elaboração das propostas, o que amplia as assimetrias de informação e, funciona como um incentivo ao risco moral, ou seja, cria as condições para que o planejamento dos transporte seja orientado no sentido de maximizar a função utilidade do concessionário em detrimento da do concedente que por definição e imposição legal, deve refletir os interesses da sociedade, tanto dos usuários como dos concernidos.

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Ihering Guedes Alcoforado
Ihering Guedes Alcoforado

Written by Ihering Guedes Alcoforado

Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal da Bahia.

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