UM INTRUSO NO PORÃO (L’homme de la cave) Ihering Guedes Alcoforado
Um Intruso no Porão (L’homme de la cave) é um thriller psicológico com roteiro e direção de Philippe Le Guay no qual aprofunda o insight fundamental que caracteriza sua filmografia: a exploração das virtualidades que emanam da alegorização dos edifico parisienses como um microcosmo da sociedade francesa.
A explroação do insight referido acima é feito por meio da ficcionliazação da história de um casal de amigos do diretor e roteirista Philippe Le Guay que é balizada por Simon Sandberg (Jérémie Renier) que vende sua adega a Jacques Fonzic (François Cluzet), a partir do que cria um cenário o qual pode ser percebido a partir de dois registros: o ofcial e o alternativo.
No contexto estritamente cinematográfico o filme pode ser considerado uma variante do gênero de thriller em voga nos anos 80 e 90: aquele em que um elemento externo doentio ameaça a simpática família burguesa e que nos propiciou alguams obras primas, a exemplo de Faltal Osession de Kurt Russel (1991), Cape Fear (1991) de Martin Scorsese e Window on the Pacific de John Schlesinger. Uma variante porque em Um Intruso no Porão, o “bandido” em questão que ameaça não é um psicopata e sim um negador do Holocausto, o que no contexto francês contemporâneo nos remete a uma, das muitas tensões que dilacera a auto-representação da República francesa, partir de dois registros: o oficial e o alternativo.
O cenário oficial é expresso nos planos iniciais do filme, por meio dos quais é estabelecido uma idealização da sociedade francesa no qual se assenta a auto-representação da República francesa e suas pretensões universalistas, a qual borra a diversidade segragacionista da sociedade francesa, e, na qual se insere naturalmente o personagem de Simon, um judeu legal, que não só entrega as chaves das instalações à Fonzic antes de assinar a escritura de venda, sujeito ao pagamento imediato do preço negociado, mas cede um dos seus cômodos para que fique alojados por uns dias, enquanto aluga um studio.
Enquanto o cenário alternativo, mas realista, começa a delinear-se nos planos seguintes, quando alguns dias depois da transçaõ Simon descobre que Fonzic se mudou para o porão, descumprindo os regulamentos do edífico, um microcosmo da República francesa. Os contornos desse cenário marcado pelos conflitos sociais e etnicos tornam-se mais evidente quando Simon e sua esposa Hélène (Bérénice Bejo) descobrem que Fonzic é um historiador que contrapõe fatos seletivos para questionar o testemunhos de judeus sobre o Holocausto, o que resultou na sua demissão como professor de história do sistema de Educação Nacional, o que o lança numa situação que beira a indigência.
Um Intruso no Porão (L’homme de la cave) é configurado nesse cenário alternativo que se contrapõe a auto-representação simbólica não só da República francesa, mas também da familia judaica. O filme é vertebrado por meio da disputa psicológica e legal que articula uma narrativa que nos permite considerá-la como uma variante do genero de thriller referido acima. Mas, que alinhado a cinematografia do diretor se configura uma metáfora, de um das muitas tensões políticas que implode a representação simbólica da República francesa que se concebe como homogênea a despeito das evidências da sua heterogeneidade étnica, cultural e política.
A heterogeneidade é posta em cnea por meio da tensão que decorre da evidenciação do antisemitismo presente em latência na sociedade francesa, mas cada vez mais visivel na esfera política com a ascensão da direita francesa que vocaliza esse sentimento. No filme, o personagem Fonzic é apresentado de forma ambigua, tal como se manifsta na atualidade na França. De um lado, temos a auto-representação simbólica da República francesa, na qual Fonzic encarna o que pode ser considerado como um representante emblemático das pessoas conspiradoras, racistas e extremistas que corrompem os fundamentos da democracia sob a capa hipócrita da liberdade de pensamento e expressão, e, do outro, como um mero indigente que na sua condição de historiador utiliza seu tempo para mobilizar “evidências” históricas que põe em cheque os testemunhos sobre o holocausto, relativizando-o ao contrapo-lo a outros tantos holocaustos suprimidos dos livros de história, a exemplo dos índios americanos. É, portanto, a sua condição de “negacionista”, o que motiva as mais diversas atitudes ameaçadoras emanada dos judeus, tanto de Simon, como da comunidade judaica na qual se insere, envolvendo desde assédio moral, até a violência física.
O incomodo gerado pelo filme decorre do fato que a ambiguidade que caracteriza o personagem de Fonzic logo se difunde não só para a sociedade que forma o condominio: um microcosmo da sociedade francesa, mas para a própria familia de Simon, em especial via apersonagem da filha de Simon que tem afinidades eletivas com Juliette Lewis em “Cape Fear” de Scorcese
No primeiro caso, por meio das manifestações anti-semitas entre moradores do edífico que se expressa inclusive no questionamento do direito de propriedade de Simon do apartamento e, no segundo caso, quando a filha do casal é ‘tocada” pela visão alternativa de Fronzic.
Vale destacar o partidarismo do Diretor fica evidenciado ao mostrar que os judeus antinegacionistas agem como negacionistas, que buscam ampliar o escopo das razões para partir para a ofensiva com a consciência limpa, ao transferir para o condominio a responsabilidade pelos delitos, abusos, humilhações (e, finalmente, talvez crimes) que estão prestes a cometer, o que é mostrado pela negação a água e ao banheiro necessário a satisfação das necessidades básicas de, empurrando-o para uma situação desamparo, negando-lhe minimo do conforto que desfrutam. E assim, induz o espectador a concluir que tudo o que os inimigos de Fonzic têm busca salvar é questionável, inclusive seu título de propriedade.
Por fim, o grande mérito de Um Intruso no Porão (L’homme de la cave), no meu entendimento, deve-se ao fato de não só provocar esse incomodo que problematiza tudo e todos, a ponto de impossibilitar o diretor de apresentar um ponto final no conflito e na narrativa, ficando tudo em devir. Mas também por nos permitir vislumbrar uma afinidade eletiva com Metrópole, o grande clássico do cinema de Fritz Lang que, de forma não intencional anunciou a emergência de forças políticas e sociais até então em latência, magnificando o incomodo aludido acima.