REVISIONISMO HISTÓRICO: Uma Resposta à Resposta (Ihering Guedes Alcoforado)
No artigo “Combates pela História do Brasil: uma resposta ao revisionismo histórico” de Patrícia Valim, professora de História da Bahia no Departamento de História da UFBA, e Jean Pierre Chauvin, professor de Cultura e Literatura Brasileira no Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA-USP os autores se propõe da uma resposta ao que entendem por revisionismo histórico em curso.
O argumento dos autores tem como referência o ano de 1929, uma data rica em implicações, entre as quais ressaltam i)a Crise de 1929 associada não só a um crise do capitalismo, mas principalmente do que consideram uma teleologia pré-nacionalista que articula uma narrativa histórica presente nos manuais de História em a ii) a criação da Revue des Annales considerada “ um marco dos novos modos de vislumbrar e fazer História” e, cuja significação é sintetizada pelos autores.
“Isso significa que, há pelo menos 90 anos, desconfia-se que a historiografia não defende mais a inexorabilidade dos documentos, fatos, testemunhos ou evidências. Compreendida, desde o século XIX, como ciência (saber específico) e reconfigurada como disciplina curricular, passou-se a discuti-la como discurso plurívoco que registra eventos de breve ou longa duração (história a respeito de). Quer dizer, há quase um século admite-se que uma das tarefas do historiador é problematizar o pretérito, sem perder de vista que a escrita da história envolve um conjunto de artifícios textuais, combinados a diferentes versões (ou percepções) sobre determinado evento, situado geográfica e temporalmente.”
E, em seguida introduz o objeto da sua resposta ao revisionismo histórico em curso e, para tanto tomam como referência um texto de um historiador, mas dois twitters do atual vice-presidente da República, general Hamilton Mourão nos quais busca resgatar o espirito empreendedor do colonizadores:
“ No primeiro, comemorou a criação das capitanias hereditárias no reinado de d. João III, em 1532[3], afirmando que “o país nascia pelo empreendedorismo que o faria um dos maiores do mundo. É hora de resgatar o melhor de nossas origens”. No segundo, afirmou que “donatários, bandeirantes, senhores e mestres do açúcar, canoeiros, tropeiros, com suas mulheres e famílias, fizeram o Brasil. Só um povo empreendedor constrói um país dessas dimensões que segue o destino manifesto de ser a maior democracia liberal do Hemisfério Sul” (grifos nossos).
Na preparação do terreno para a resposta ao revisionismo os autores acreditam que
“O general Hamilton Mourão não publicou seus twitters na última semana de setembro à toa; tampouco recorreu despretensiosamente à palavra “empreendedorismo” para designar a relação de exploração colonial portuguesa no território do Brasil desde o século XVI.”
Com o que concordo, mas discordo com a justificativa que a divulgação dos twitters deveu-se ao fato que
“Um dia antes da publicação do primeiro twitter, em 27 de setembro de 2019, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) noticiara que a informalidade no mercado de trabalho bateu recorde, desde 2016, e representa atualmente 41,4% da população empregada no País. São 38,8 milhões de pessoas sem carteira assinada, sem direitos trabalhistas, autônomos sem CNPJ, atuando por conta própria, “empreendedores de si mesmos”. A sigla “Você S/A” nomeia a promessa de rentabilidade material e simbólica, concomitante com o processo de “autovalorização de si”: cada sujeito acumularia valor ilimitadamente — S -S’, nos termos de Laval e Dardot, em A nova razão do mundo[…]
Nossa discordância deve-se a fatos históricos amplamente documentados que ressaltam o que General Mourão nomeia de empreendedorismo na colonização portuguesa, mas que enunciações mais elaboradas, a exemplo da de Nestor Duarte em Privatismo e a Ordem Privada criaram as condições tanto em Portugal como no brasil para uma unidade territorial que dominada pelos interesses privados bloquearam, quando não distorceram nosso processo de desenvolvimento político. Ou seja, a tradição ibérica que emerge na leitura de Nestor Duarte ao empreendedor individual correspondia um ambiente institucional com raízes profundas na formação portuguesa e, que transplantado para o Brasil, com ajustes que a nova realidade impôs, criaram a condições para a nossa unidade territorial e politica.
Ou seja, não tem nada a vê com o ambiente institucional associado ao neoliberalismo muito bem sistematizado por Laval e Dardot, em A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal –, muto mal resgatado pelo autores, dado que o legado suscitado pelo General Mourão não tem qualquer relação com
“ (O) processo de subjetivação do capitalismo em seu momento neoliberal, a “autovalorização de si” pressupõe um movimento duplo e perverso: o apagamento das condições históricas, que colocaram o sujeito em determinada situação, e a redução da própria existência, situada num presente absoluto e sem saída (para além do próprio esforço), pois nega a história das lutas da classe trabalhadora e esvazia partidos e sindicatos, como instâncias de representação dos trabalhos formais ou informais.
E, também não passa de mera ilações a conclusão dos autores que, um possível resgate de uma sociedade empreendedora a partir de novo ambiente institucional:
“[…] implicaria aceitar a ideia de que seria louvável “resgatar” (ou seja, retroceder cinco séculos depois) “ao melhor de nossas origens” (ou melhor, celebrar o genocídio e a exploração dos povos originários ou trazidos à força da África, em nome da “conquista” e colonização)?
O debate histórico é benéfico, desde que tenha como premissa a consideração das distintas perspectivas de enunciação e que se possa estabelecer dialogicamente um entendimento do que deve ser descartado e do que deve ser revisitado e atualizado. E neste sentido em nada contribui idéias que tem seu valor para o debate pela busca do poder, mas que pouco contribui na busca do saber, a exemplo do entendimento que os e os twitters
“[…] são emblemáticas de dois movimentos intimamente relacionados e que estão no centro político do bolsonarismo, aqui entendido como um fenômeno de massa cunhado pela extrema direita. O primeiro movimento diz respeito ao revisionismo histórico como um fenômeno central dos governos de centro-direita, para além de nossas fronteiras, mas que, no Brasil, adquire estatuto de negacionismo histórico […] O segundo movimento diz respeito à estratégia desse revisionismo, que subtrai tensões, ignora fissuras, menospreza explorações, disfarça rupturas e atos de resistências, em nossa história […] [1]
Até porque Bolsonaro passa e o debate fica, envolvendo revisonismo e o negacionismo e os múltiplos significados que tais termos podem assumir.
Enfim, Os autores são competentes na identificação do que deve ser descartado, o que insinuam nos parágrafos finais ancorados numa revisão bibliografia, e, nisso dão uma contribuição positiva ao debate, mas pecam pela dificuldade de reconhecer que o ambiente institucional e os arranjos organizacionais estabelecidos pelos portugueses, com a necessárias adequação a realidade do tempo presente nos poderá oferecer insights valiosos na institucionalização de novos processos históricos que nos leve a sua sociedade mais eficiente e inclusiva e, para isso é fundamentar resgatar o espírito empreendedor em toda sua inteireza, ou seja, tanto na esfera individual, como na esfera institucional, podado das suas mazelas e para tanto o melhor ponto de partida, salvo engano, é Nestor Duarte.
NOTAS
[1] Não sejo qualquer sentido associar o debate sobre o empreendedorismo ou o privatismo no nosso processo colonial com o debate contemporâneo em torno do marxismo cultural e que um bem vindo revisionismo da nossa colonização pela organizacional e institucional tenha como objetivo “[…] de a um só tempo destruir e apagar qualquer vestígio da consciência pública, que coloca em xeque os fundamentos ideológicos do poder vigente, e impor significados próprios à história para legitimar esse mesmo poder.”
REFERÊNCIAS
DUARTE, Nestor., A Ordem Privada e a Organização Política Nacional: Contribuição à Sociologia Política Brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939
VALIM, Patrícia & CCHAUVIN, Jean Pierre, “Combates pela História do Brasil: uma resposta ao revisionismo histórico” Jornal da USP, 1110/2019 https://bit.ly/32hkCJ3