REGIMES DE HISTORICIDADE E ANTROPOCENO: Além da Intolerância Política — Ihering Guedes Alcoforado

Ihering Guedes Alcoforado
5 min readNov 30, 2021

François Hartog em Régimes d´historicité anuncia nossa entrada na era do presentismo e do memorialismo os quais compartilham a abdicação da história objetiva a favor da história subjetiva que configura a historicidade de nosso tempo presente. Este giro no entendimento F Hartog se manifesta em dois sintomas: i) a onipresença de memória e ii) a obsessão pela preservação do patrimônio, transformando o monumento em memoria. [1] Esse giro se revela o meio do caminho para se descartar a autêntica análise do passado fundada no fato histórico, e avançar na consideração como objeto da história as vivências subjetivas, as recordações e rememorações reavivadas e emolduradas em narrativas transhitóricas.

Um dos resultado desta inflexão decorrente da consideração das vivências subjetivas como objeto histórico é a problematização do conceito de História como um metaconceito de vocação universalista que expressa uma coletividade singular transcendental, a partir de um grande número de experiências humanas e suas memórias coletivas, todas subsumidas à História.

Ou seja, no novo regieme de historicidade enfatiza-se os aspectos pluralistas, setoriais e contingentes de determinado objeto histórico, e, passa-se a falar não mais de História, mas de histórias; e, assim, aprofunda-se o fosso entre a realidade factual e sua apreensão linguística, o que nos leva a crer que estamos vivenciando uma transição semântica profunda tanto no plano semântico, quanto político.

Transição semântica decorrente do reflexo nas expressões linguistica manejadas nos novos estudos históricos das mudanças na experiências históricas concretas, a exemplo da mutiplicação das identidades coletivas, as quais são magnificada pela própria natureza da linguagem que se revela sempre ambígua e ao mesmo tempo receptiva e produtora da consciência dessas mudanças na realidade social e política.

As referidas ambiguidades e criatividade da linguagem política que emerge dessa multiplicação de identidade se expressa de forma exemplar nos discursos identitários e que se reflete na a intolerância política do nosso tempo presente fundado na semantização das “plavras mágicas”, a exempo de História, Democracia e Liberdade, por meio das quais cria as condições de possibilidades para a reemergência da sedução totalitária assumida, num passado recente pelas comunidades universalisantes formada pelos defensores da ditadura do proletariado, como pelos defensores da ditadura do capital, mas que no tempo presente começa a seduzir as minorias formadas pelas minorias identitárias. [2]

No Brasil de hoje, a trajetória na direção totaliária é tortuosa mais perceptível nos seus contornos nos dois campos referidos acima, donde ser imperativa sua enunciação, mas nesta nota me resumo a primeira tendo em vista evidenciar a necessidade de sua superação tendo em vista ajustar o regime de historicidade ao desafios postos pelo antropoceno.

O ponto de partida da intolerância política recente foi semeada num primeiro momento com o “nós vs. eles” de Carl Schmitt reposicionado pelo ex-Presidente Lula. A dicotomia se disseminou rapidamente e consolidou uma polarização que, pavimentou uma identificação dos aderentes dos dois polos com os icones da intolerância extrema que se manifestou no Brasil de forma aguda, num momento histórico muito particular, quando se deu o abandono da luta parlamentar pela luta armada: Carlos Alberto Brilhante Ustra e Marighella.

Do lado da direita, o sintoma é a identificação crescente com Carlos Alberto Brilhane Ustra, coronel do Exército condenado em 2008 pela Justiça brasileira como torturador durante a Ditadura Militar (1964–1985), um representante emblemático do campo da direita, recentemente, elevado ao panteão dos heróis nacionais. Do lado da esquerda, a reação adota o mesmo diapasão com o reavivamento da memória do icone da intolerância extrema no campo da esquerda: Marighella.

Ambas posturas compartilham i) a inclinação de tratar os ícones do período da intolerância extrema como heróis nacionais e ii) a desconsideração dos fatos históricos tanto no campo da direita, como do campo da esquerda, que evidenciam que a maioria da população não se identificava com essa intolerância extrema.

O resultado desse viés é o consequente surto identificatório com os ícones da intolerãncia extrema é que se perde a oportunidade de revisitar-se os fatos históricos em sua inteireza e, assim, recuperar as alternativas então postas e que foram descartadas tanto a direita como a esquerda e, evidenciar os equívocos nos dois campos que marcou o período da luta armada no Brasil e, assim evidenciar as falácias da soluções totalitárias que se colocam com o desdobramento natural das intolerâncias extremas.

Esses movimentos equivocados à direita e à esquerda tem em comum a resemantização da História, da Democracia e da Liberdade, de forma que já não se pode falar da História, Democracia e Liberdade, com H, D L maiúsulas, mas das historias, das democracias e das liberdades com d, m e l minúsculos, tal como resemantizado pelo marqueteiros políticos e inserida no tempo presente. E, também tem em comum compartilharem o presentismo e, com ele o desprezo pelas mudanças no substrato material que estabelece as condições para nossa inserção no antropocenono, o que radicaliza a exclusão daquela história adotada pela modernidade, e que pretendia dar o rumo do desdobramento do experimento dos homens ao longo do tempo. O resultado é uma inadequação dos frames manejados pelos intolerantes no enfrentamento desse novo desafio.

No enfrentamento do desafio posto pelo atropoceno ao regime de historicidade vigente, julgo pertinente seguir a trilha de F Hartog (2021) quando, tendo como pano de fundo o antropoceno, repassa os sucessivos questionamentos do conceito moderno de história, como uma etapa na identificação do que poderia ser uma nova condição histórica e, portanto, um possível novo conceito de história ajsutado a nossa entrada no Antropoceno, com as novas temporalidades sem precedentes decorrentes da nossa entrada nessa nova Era, as quais certamente terão implicações nos conceitos não só de Historia, Democracia e Liberdade, mas também de Meio Ambiente.

NOTAS

[1] O objeto de Hartog são o que considera os diferentes regimes de historicidade, em especial seus momentos de crise, discrepâncias, limites e limiares, mudanças de paradigma. Parte da História como magistra vitae, na qual o presente e o futuro é considerado como um desdobramento do passado. Descreve os diferentes estágios desse regime na sua busca de entender a crise da historicidade de nosso tempo presente a qual no seu entendimento se manifesta em em duas rupturas ou sintomas: a) a que substituiu a certeza de um progresso sem fim, inscrito nas leis do devir histórico, pelo antigo modelo do qual a história era dona e guia da vida presente; e a que, nas sociedades contemporâneas, b) impôs um presente devorador, onipresente e, no entanto, invadido pelas exigências da memória e das obsessões patrimoniais manifesto na onipresença de memória e na obsessão pela preservação do patrimônio, transformando o monumento em memorial.

[2] Este processo será objeto de uma análise específica.

REFERÊNCIAS

KOSELLECK, Reinhart., 2004 Historia/Historia, Madrid,Trotta, 2004

HARTOG, François, « La disparition de l’histoire ? », Recherches de Science Religieuse, 2021/4 (Tome 109), p. 739–752. DOI : 10.3917/rsr.214.0739. URL : https://www.cairn.info/revue-recherches-de-science-religieuse-2021-4-page-739.htm

HARTOG, François., Chronos. The West grappling with Time ”Paris: Gallimard,“

HARTOG, François., 2003 Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps. Paris. Seuil, 2003

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Ihering Guedes Alcoforado

Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal da Bahia.