PÓS-TRABALHISMO E A CRISE DO MUNDO DAS OCUPAÇÕES: Uma nota sobre os fundamentos do novo mercado— Ihering Guedes Alcoforado
“”Um cadáver domina a sociedade — o cadáver do trabalho — […] Quem ainda não desaprendeu de pensar reconhece (que) a sociedade dominada pelo trabalho não vive uma crise transitória, antes está chegando ao seu limite último […] Porém, nesta sociedade, quem não consegue vender a sua força de trabalho torna-se “superfluo” e é atirado para a lixeira social. […]Precisamente no momento que está a morrer, o trabalho revela-se uma potência totalitária que não tolera nenhum outro deus junto de si.”[Grupo Krisis, Manifesto Contra o Trabalho]
O pós-trabalhismo parte da premissa que a degradação do mercado de trabalho não pode ser enfrentada via o mercado, já que faz faz parte do problema e não da solução. Ou seja, admite que a atual desestruturação do mercado de trabalho neoliberal não pode ser enfrentada por meio da ampliação da economia de mercado no qual se realiza/transaciona os valores de troca materializado nas mercadorias, nem pela desregulação e flexibilização das relações de trabalho. E sem negar os benefícios da ampliação da produção de valores de troca e num aumento incremental nas ocupações, não incluo entre seus benefícios a produção de ocupações suficientes para a mão de obra disponível no curto, médio e longo prazo.
Em função disso o pós-trabalhismo apresenta-se como uma alternativas as três faces interconectadas do neoliberalismo : i) intelectual, ii) burocrática e iii) política, as quais se assentam na mistificação da produção voltada para o mercado.
A sua face intelectual é superada por meio de um desvelamento das falacias que o mercado desenraizado como a fonte da universalização da liberdade, e no rastro de Berlin admito que tal universalização se resume a “liberdade negativa’ que se expressa na não interferência do governo nos negócios dos cidadãos: uma idealização, e, que não alcança a liberdade positiva associada ao autodomínio dos indivÍduos e ao exercício do poder.[BERLIN,2002]
A face “burocrática” (anti-estatista e pró-mercado)é superada via a evidenciação do sua visão essencialista tanto do mercado como do mercado, e que resulta nas suas naturalizações, a partir da qual fundamenta a priori a liberalização, a desregulação,a privatização e despolitização.
A face política é manifesta na despolitização (politics) da política (policy) reduzida a um mercado. A superação desta visão é evidenciada por meio da reemergência de valores e pincípios inegociáveis, a exemplo da identidade nacional e os valores morais cultivados pelas comunidades e nações.
Em função do exposto acima, o pós-trabalhismo parte de uma critica a economia política em dois planos: i) o da teoria do valor e ii) o da teoria da produção.
A critica à teoria do valor tem como objeto tanto na sua versão neoclássica como marxista. No âmbito marxista adoto o frame da Escola da Crítica ao Valor (Grupo Krisis) que foca na teoria do valor trabalho (abstrato) e do valor de troca realizado no mercado, evidenciando a sua desconsideração da relevância do valor trabalho (concreto) e o valor de uso que não chega ao mercado,o que a reduz ao reverso da teoria do valor utilidade. Já no âmbito neoclássico o foco da crítica é dirigido as fontes das necessidades e dos desejos subjetivos que se expressam na utilidade dos bens levados. Na evidenciação dessas fontes e das suas implicações sigo os rastros de J.K Galbraith na sua crítica a teoria da produção vigente., por meio da qual evidencia que as necessidades que se encontram na raiz das utilidades dependem do processo pelos quais são satisfeitas: é o processo de satisfazer os desejos quem cria os próprios desejos, de forma que a produção apenas preenche um vazio que ela própria criou.”[GALBRAITH, 1972/1958: 171]
A comparação dessa duas críticas nos permite concluir que constituem duas formas ( o verso e o reverso) de conceber um valor abstrato que realiza num mesmo mercado essencialista e naturalizado que foi extraído e universalizado a partir de uma realidade histórica específica: a vivenciada pelos economista clássicos e se cristalizou como uma “sabedoria convencional” que sobrevive as mudanças radicais nas condições materiais marcada pela escassez das quais emergiu, o mundo de David Ricardo:
“No mundo de Ricardo havia escassez de mercadorias. Estas eram associadas diretamente, se não a sobrevivência, pelo menos ao conforto elementar do homem. Com elas o homem se alimentava, se cobria e se agasalhava. Não surpreende que a produção graças à qual as mercadorias eram obtidas ocupasse o centro das atenções do homem [….] Nossa preocupação com a produção é, de fato, a conseqüencia primordial, de forças históricas e psicológicas poderosas — forças que somente através da vontade podemos esperar vencer […] O homem de hoje tem pouco em comum com a pobre e minguada existência da época de Ricardo. Mas ainda considera como importantes as mesmas coisas.”[GALBRAITH, 1972/1958: 145 e 189]
Em função do expresso acima, no enfrentamento da crise de ocupações e postos de trabalhos geradas pelos processos de produção dos valores de troca realizados via mercado, o pós-trabalhismo se apoia numa economia política que se articula em torno de teoria do valor (concreto), aquele que produz valor de uso que não tem no seu horizonte o mercado naturalizado pelo neoliberalismo e, assim, reivindica o legado da Escola Marxista de Critica ao Valor. A parit do que o pós-trabalhismo justifica a centralidade do trabalho concreto na geração de ocupações que formam a Economia (economy) do Cuidado; Um vetor fundamental no enfrentamento pelo Pós-trabalhismo das limitações do sistema de produção de valores abstratos e realizados no mercado no que concerne a produção de ocupações e postos de trabalho.
Em função do acima exposto proponho que o pós-trabalhismo se fundamente a partir de elementos extraidos dos legados produzidos no campo institucional: tanto no âmbito do institucionalismo no sentido estrito, expresso nos programas de J.K Galbraith, K. Polanyi e R. Coase, como na esfera no campo do marxismo.
No campo do institucionalismo sugiro que o pós-trabalhismo escave tres registros nas busca dos insights necessários a sua fundamentação. No primeiro o registro chamo atenção para o Institucionalismo americano expresso no programa de J K Galbraith, em especial sua crítica a teoria da produção e do valor. No segundo registro, o do Institucionalismo Histórico de Karl Polanyi, ressalto sua evidenciação da historicidade do processo de institucionalização mercado por meio de ações do Estado. No terceiro registro foco nas possibilidades analiticas da nova Economia Institucional coseana que se assenta numa visão não essencialista e não naturalista do mercado:uma visão pragmática do mercado entendido como um complexo institucional que opera de forma eficiente, diante das restrições construídas pelo sistema político e, fundadas tanto no dano material como na obrigação moral associadas a atividade econômica [ROSE, 2011]
Na interação destes três legados, vislumbramos a possibilidade de uma institucionalização do mercado como estabelecido a partir da política (politics) ao longo do tempo, a qual opera com “coisas” inegociáveis, a exemplo da identidade nacional e dos valores comunitário ou mesmo judaico/cristão, o que sinaliza uma afinidade eletiva com a “economia social de mercado” no plano econômico e ao ordoliberalismo no plano institucional. [RÖPKE, 1996/1948;NELSON, 2001;YOUNG, 2005]
O pós-trabalhismo reivindica á esquerda o legado da Escola Marxista da Crítica ao Valor (Grupo Krisis) como a base de uma nova economia política baseada no valor de uso na qual se assenta a Economia do Cuidado cuja produção de “valores concretos” serão realizados num novo mercado configurado a partir da exploração das possibilidade em latência da visão não essencialista do mercado. Este novo mercado realizará os valores concretos não incorporados nos valores abstratos produzidos no âmbito da Economia do Cuidado.
Os fundamentos deste novo mercado deve ser sistematizados a partir de uma instrumentalização criativa dos insights extraídos do legado de Ronald Coase no plano analítico, e de Karl Polany no plano histórico. No legado coseano destaco os insights que se refere a análise microeconômica dos institutos jurídicos que configuram os mercados, submetidos a novas restrições materializados na esfera politica (polity) na qual se alojam os valores e princípios inegociáveis, a exemplo da identidade nacional/étnica e valores morais ancorados tanto na nossa tradição judaica/cristão, como nossa tradição vernacular que começa a ser avivados pelos movimento de(s)colonial. Já o legado de Karl Polanyi é a fonte de inspiração para requalificar o papel histórico do Estado na constituição dos mercados tal como posto na atualidade, de forma a criar as condições para a emergência e consolidação de um “novo mercado”.
Este “novo mercado” no qual se assenta o Pós-trabalhismo é dedicado a realização dos valores concretos e de uso, e, deve complementar o “velho mercado” no qual se realiza os valores abstratos de troca vigente na atualidade e que expressa a necessidade de realização dos “valores abstratos” e dos valores concretos nele incorporado. O novo mercado preenche as lacunas do velho mercado no que se reporta a criação de ocupações e postos de trabalho. Este novo mercado constitui o núcleo duro da Economia do Cuidado, na qual se ancora a política social do pós-trabalhismo focada no enfrentamento da crise do mundo do trabalho que se express na produção limitada de ocupações e postos de trabalho pela economia de mercado vigente, tendo em vista a necessidade de ocupações e postos de trabalho da nossa população em idade produtiva.
REFERÊNCIA
GRUPO KRISIS 1999 Manifesto Contra o Trabalho. Lisboa: Ed. Antigona, 2003.
KELLY, J. L.. , 1997 Bringing the Market Back in: The Political Revitalization of Market Liberalism. New York: New York University Press
KRIPPNER, G. R., Alvarez A. S..2007 Embeddedness and the Intellectual Projects of Economic Sociology, Annual Review of Sociology, 2007, vol. 33 pg. 219–24.
KRIPPNER, G., Granovetter M., Block F., Biggart N., Beamish T., Hsing Y. T., Hart G., Arrighi G., Mendell M., Hall J., Burawoy M., Vogel S., O’Riain S.. Polanyi Symposium: A Conversation on Embeddedness, Socio-Economic Review, 2004, vol. 2 (pg. 109–135
MASSEY, D. S., Sanchez R. M., Behrman J. R.. Of Myths and Markets, The Annals of the American Academy of Political and Social Science, 2006, vol. 606 (pg. 8–31
MUDGE, Stephanie Lee., 2008, What is neo-liberalism?, Socio-Economic Review, Volume 6, Issue 4, October 2008, Pages 703–731
NELSON, R. H.. , Economics as Religion: From Samuelson to Chicago and Beyond, 2001. Pennsylvania State University Press.
POLANYI, K.. , The Great Transformation: The Political and Economic Origins of Our Time. Boston, MABeacon Press 2001[1944]
PRASAD, M.. , The Politics of Free Markets: The Rise of Neoliberal Economic Policies in Britain, France, Germany and the United States, 2006Chicago, ILUniversity of Chicago Press.
RÖPKE, W.. , The Moral Foundations of Civil Society. New Brunswick, NJ, and London: Transaction Publishers 1996[1948]
ROSE, David C., The Moral Foundation of Economic Behavior. Oxford University Press, 2011
YOUNG, C.. The Politics, Mathematics and Morality of Economics: A Review Essay on Robert Nelson’s Economics as Religion, Socio-Economic Review, 2005, vol. 3 pp. 161–172