O SILÊNCIO ANTES DE BACH (2007) de Pere Portabella
IHERING GUEDES ALCOFORADO
O Silêncio antes de Bach (2007) do diretor catalão Pere Portabella oferece várias camadas de leitura, embora o diretor não abra mão de evidenciar o enquadramento da sua narrativa frame: a automatização da música nos primeiros e nos últimos planos não deixa margem a duvidas acerca das suas intenções no enquadramento do legado de Bach na era da reprodutibilidade técnica da música.
Ou seja, o legado de Bach é enquadrado num cenário marcado nos planos iniciais e nos planos finais por performance das “atuais condições produtivas” da musica, para usar uma expressão de W. Benjamin.
Nos planos iniciais um piano automático em movimento faz uma performance, ao longo da qual revela suas engrenagens mecânicas, evidenciando a captura da execução musical, até a pouco exclusivo do homem, pelo sistema mecânico.
Enquanto que nos planos finais o piano automático retorna para evidenciar não seu registro hard, isto é, sua engrenagem mecânica como no inicio; mas para ressaltar o registro soft, pondo ao alcance da nossa vista o cartão/programa que comanda o processo de execução.
A partir destas duas apreensões da execução musical Portabella marca sua diferenciação com relação a Benjamin no que se refere a execução musical na era da reprodutibilidade técnica, o que lhe permite ressaltar a permanência da centralidade da musica no mundo da vida, a despeito de parte desse mundo já ter sido capturado e submetido ao sistema, dependendo não mais do interprete mais do afinador do instrumento.
Benjamin toma como referência a reprodução descolada da sua produção, a exemplo do que se dá com reprodução de uma música gravada, desconsiderando a o processo original de produção da música o que envolve o instrumento e o pianista; enquanto Portabella opera num outro registro, ao manter o instrumento (o piano) dispensando apenas o pianista, numa clara sinalização da obsolescência do trabalho dedicado a produção da musica para terceiro, isto é, como valor de troca, o que não impede da relevância da execução musical como valor de uso.
Para Portabella a perda da centralidade do interprete musical evidenciada com os pianos atores que executam a música para terceiros, ou seja, como um valor de troca, não impede a permanência da centralidade da interpretação da musica no mundo da vida do caminhoneiro, para quem a interpretação musical solitária é uma prática vital, ou mesmo do povo alemão que, quando não toca e canta, grita. São os planos em torno do caminhoneiro os elos que atam os clusters narrativos.
É o caminhoneiro que ressalta a centralidade da musica no mundo da vida. É no caminhão com as imagens da Virgem Santa Ana que se coloca a execução musical na esfera da mundo da vida, como uma transição ao mundo transcendental da Virgem Santa Ana, já que as cenas das estradas terminam nos remetendo a Igreja de São Tomaz onde Bach trabalhou e se encontra sepultado.
Este deslocamento cria as condições para um contraponto entre duas reflexões sobre a musica: uma endógena e outra exógena. A reflexão endógena, estritamente musical é posta nos diálogos do personagem Bach, ao afirmar que uma composição musical, por direito, deve ser agradável, deve agradar o ouvido e satisfazer a mente, o que ilustra com a execução de uma nova peça na qual utiliza a nova técnica napolitana de cruzar as mãos, mostrando que o desenvolvimento indeterminado do tema é compensado por uma estrutura profundamente harmoniosa, resultando numa exposição pura e lúcida que produz novas sensações nunca antes sentidas, segundo seus ouvintes. A reflexão exógena ressalta seu impacto sobre a sociedade, a exemplo dela magnificar o próprio Deus, afinal sem Bach Deus seria pequeno, ao tempo que também funciona como apoio a resistência as tentativas de degradação, como bem ressalta o caminhoneiro.
Ou seja, Portabella nos oferece uma uma nova leitura da musica, tendo em conta sua reprodutibilidade técnica. Uma reflexão sobre a relação da musica com o mundo da vida e o sistema. A relação da música com o mundo da vida é evidenciada pelo seu papel de preencher as lacunas humanas do sistema; enquanto a relação da musica com o sistema, é sugerido pelos sons dos meios de deslocamentos: risos, trens e cavalos, os quais oferecem regularidades/insights para as composições musicais e, com elas a possibilidade de sua reprodução mecânica.
Por fim, é esta duplicidade da relação da música com o mundo da vida e com o sistema que justifica sua ambiguidade da função da musica, o que é inserido na narrativa por meio do “sebista” nos seus comentários ao livro do judeu polonês Simon Lakes, Musique d´un autre monde, quando ressalta o papel da musica tanto na salvação, a exemplo da experiência registrado por Primo Levi no campo de concentração, que debita a música ter-se mantido em pé; como na danação, ou seja, no próprio extermínio.