O JOELHO DE CLAIRE (Le Genou de Claire-1970): Uma Aproximação Pedofílica (1) à Laura

Ihering Guedes Alcoforado
5 min readSep 21, 2022

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IHERING GUEDES ALCOFORADO

“Com rapazes não me sinto segura.Prefiro estar com alguém que poderia ser meu pai. Devo sentir falta da afeição paterna. Com alguém mais velho reencontro um pai. Quero saber o que ela faz da minha opinião. Quero estar sempre ao seu lado. Quero ser menina com ele. Sinto-me bem.”[ Laura, 16 anos]

Eric Rhomer nos lega uma obra estruturada em dois planos: i) o mundo da vida francês apreendido dos seus (des)encontros amorosos e ii) o mundo das perversões e fixações universais. A sua cinematografia é inaugurada com o filme Os Dentes de Berenice, uma adaptação do conto de Edgard Alan Paul no qual representa uma fixação patológica e mórbida e que retorna de forma mais elaborada e refinada artisticamente na segunda parte do seu filme Joelho de Claire (Le Genou de Claire), cuja primeira parte trata de forma frontal a questão da pedofilia e qual também se encontra de forma lateral Pauline à la Plage. Em ambos os filme trata a questão da pedofilia por meio de um deslocamento da enunciação da aventura pedofílica do personagem que nomeia o filme para uma outra personagem. [2]

Le Genou de Claire na “justificativa” da pedofilia consentida fica por conta de Laura (uma personagem adolescente) que tem um “relacionamento” com Jeronome, que tem idade para ser seu pai.

O ponto de partida de Le Genou de Claire é a reflexão de escritora Aurora (Aurora Cornu) sobre a criação literária e que resulta na indução do seu amigo Jérôme (Jean-Claude Brialy) numa investigação pedofílica. Essa insinuação se insere na sua estratégia de criação literária, já que admite enquanto escritora que os heróis de uma história sempre tem os olhos vedados ou não fariam nada e a ação pararia, o que no seu entendimento reflete a nossa realidade dado que todos nós usamos venda, ou pelo menos viseira. E, como para ela , o escritor deve ficar de olhos abertos já que no seu entendimento não inventa, ela induz seu amigo, o diplomata Jeronome fazer uma investigação pedofílica para ter acesso, por meio dos seus relatos, a lógica própria da personagem pedofílica. O resultado é surpreendente pois, em vez da lógica do pedófilo, Jérôme, que não tem nada de pedófilo, o que se tem é a lógica da constituição do desejo da suposta vítima da relação pedófila, no caso Laura

Na trama destaco dois fatos O primeiro é que a pedofilia é naturalizada pela mãe que mesmo reconhecendo que Laura estava apaixonada e de que essa brincadeira do passeio às montanhas sozinha com Jerônimo poderia virar coisa séria, autoriza o mesmo, e, o segundo, é a justificativa da relação ser feito por Jerônimo, comprometido com relação pragmática, mas por Laura, a adolescente.

A personagem Laura é apresentada por meio das suas próprias palavras “Tenho cara de menina, mas as aparências enganam. Sou bem mais madura que a minha idade […] Desde que mamãe se divorciou, ele fez de min sua confidente. Logo comecei a pensar de forma mais madura que as outras meninas. Minhas colegas são bem mais infantis. Posso me imaginar casada. Não quer dizer que me casaria.”

E, com esse perfil que Laura declara, nos braços de Jérôme, durante o passeio “perigoso” as montanhas seu desinteresse pelos jovens da sua faixa etária, ao tempo que justifica sua preferência por homens que tem idade de ser seu pai.]

Com relação ao garotos da sua idade ela afirma que eles lhe assustam,e quanto mais bonito, mais assustador e, justifica isso na inclinação dos garotos em se impor a ela, que é aberta a experiência do amor romântico: “É só estar entediada que julgo amar que quem quer que esteja ao meu lado.” E arremata: “O que me irrita, é que logo, logo, ele se acha importante… Julga-se um “sultão”. Aí acaba. No seu entendimento ela não se sente segura com os rapazes da sua idade por “instinto de preservação.

Essa dificuldade, ou mesmo impossibilidade do estabelecimento da relação com garotos da sua idade leva-a a declarar recostada nos ombros de Jerônimo:

“Com rapazes não me sinto segura.Prefiro estar com alguém que poderia ser meu pai. Devo sentir falta de afeiçoes paterna. Com alguém mais velho reencontro um pai. Quero saber o que ela faz da minha opinião. Quero estar sempre ao seu lado. Quero ser menina com ele. Sinto-me bem.”

Uma das possíveis inferência dessa afirmação de Laura, que expressa a mensagem da primeira parte do filme de Eric Rohmer, é uma justificativa, por parte da “suposta” vítima, da relação pedofílica consentida e, expressa em boa parte o entendimento de uma parte da intelectualidade francesa de então.[2], configurando um tratamento reverso, mas complementar, daquele focado no pedófilo adotado, configurando-se duas abordagens sobre pedofilia: a moderna e a pós-moderna. Na visão moderna como mostrava a análise moderna foucaltiana de poder e sexualidade é a “criança/adolescente” que deseja aquele que estão em posição de poder em relação a ela e que se expressa nas palavras de Laura. Enquanto que na visão pós-moderna, adotada por alguns psicanalistas, a exemplo de Contardo Calligaris, são aqueles imbuídos do poder que desejam o seu oposto, donde ele considera o pedófilo “é quem tem a fantasia irresistível de fazer, com a criança, coisas que ela não entenda”: uma manifestação odiosa do poder. O que o leva a concluir que “Lolita”, de Nabokov, não ensina nada sobre pedofilia, porque a paixão de Humbert Humbert não tem nada a ver com pedofilia”.

O que nos permite concluir que, do ponto de vista clínico, não existe relação pedofílica em qualquer filme de Eric Rohmer, o que não impede de existir quando observado a partir de outras perspectivas, a exemplo da legal.

NOTA

[1] Nesta nota opero com o conceito legal de pedofilia, e, portanto, uma construção social e política que assume configurações distintas no espaço e tempo, o que ficou bem evidenciado nos anos setenta na França por ocasião da revisão do Código Penal por meio de uma petição endereçada ao Parlamento em 1977 defendendo a descriminalização de todas as relações consentidas entre adultos e menores de quinze anos (a idade de consentimento na França), sem limite de idade, ou seja, a eliminação da presunção legal de violência nas relações sexuais abaixo daquela idade.

[2] No caso de Pauline à la Plange a enunciação das fantasias pedofílicas fica por conta de Marrion, a tia de Pauline que, por sua vez resiste a pressão da tia para que tenha um caso com Pierre, a quem Pauline considera um coroa, preferindo os garotos da sua idade; enquanto que a justificativa selvagem da pedofilia fica por conta do “predador” sexual namorado de Marrion.

BIBLIOGRAFIA

BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge ZAHAR Editora, 1997

CALLIGARIS, Contardo., É a ‘inocência’ da menina ignara que excita o pedófilo, não o corpo dela. IN folha de São Paulo, 30 de set. de 2020.

FOCAULT, Michel. História da Sexualidade 1: A Vontade de Saber. São Paulo: Graal, 2005

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Ihering Guedes Alcoforado

Written by Ihering Guedes Alcoforado

Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal da Bahia.

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