“O ESPELHO” DE ANDREI TARKOVSKY: Algumas Aproximações (Ihering Guedes Alcoforado)

Ihering Guedes Alcoforado
5 min readNov 13, 2019

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Em mais uma iniciativa do Cine Cineasta teremos hoje, 13 de novembro de 2019, às 19h20, na Saladearte — Cinema da UFBA, exibição em sessão única de “O Espelho”, a qual faz parte da Mostra dedicada ao mestre russo e que exibirá a obra completa do diretor até o dia 27.

Dada a complexidade do referido filme, a seguir faço algumas aproximações tendo como eixo a visão do cinema do diretor Andrei Tarkovsky, ao qual nos aproximamos a partir diversas perspectivas e aproximações correspondentes.

A primeira aproximação é a que explora as implicações da sua consideração da finalidade da expressão cinematográfica ser nos Afetar, a partir desta ótica a obra tarkovskiana pode ser concebida como essencialmente mimética, ou seja, ressalta-se o fato de admitir como uma necessidade que o Diretor comova-se por determinadas características afetivas de seu objeto, integrando-as em sua película, de forma a transmiti-las ao expectador por meio da película; ou seja, para Tarkovsky o artista não se expressa por si mesmo, reflete o mundo que lhe afeta, donde a centralidade do seu sentimento acerca do mundo na sua cinematografia. E é por isso que para Tarkovsky a “linguagem emocional e contagiosa da arte” é uma comunicação que não culmina com a comunicação da emoção, a qual não é mais que um meio, já que aponta para mais além e constitui-se um efeito de conhecimento, de iluminação e de revelação, o que é possível por meio da modulação e não da articulação do tempo. [AUMONT, 2004:135 e 150]

A segunda aproximação é aquela que o considerado o cineasta teórico do tempo, já que transformou a formula clichê, “o cinema como arte do tempo”, em verdadeiro problema teórico, chamando nossa atenção para três dos seus planos analíticos: i) o tempo empírico associado a experiência temporal do espectador, a qual qualifica como uma “relação simultânea com a memória e a experiência do tempo”, ou seja, “com o tempo passado e o tempo que passa”; ii) o tempo enquanto uma mumificação da mudança e iii) o tempo esculpido pelo cineasta que recolhe-o e reforma-o, esculpindo-o por meio da expressão cinematográfica tendo em vista nos afetar.[AUMONT, 2004:38–40]

A modulação do tempo no cinema é para Tarkovsky, a forma de “desvelar diretamente” o mundo (diferentemente da literatura que passa pela língua) o que é possível dada a natureza sintética da arte cinematográfica. Ao considerar a cinema como uma arte sintética, em contraste com as demais artes que considera analíticas, Tarkovsky opõe-se a montagem como princípio estético do cinema, por meio do que circunscreve o “lugar que ocupa no cine soviético. Em função disso, O Espelho pode ser considerado como o filme-manifesto de Adrei Tarkovsky, o pensador do cinema como a arte da modulação do tempo. [AUMONT, 2004:150–151]

Andrei Tarkovsky declarou em Esculpindo o Tempo que em O Espelho utilizou os recursos do cinema para fazer uma visão honesta e holística de sua vida expressa de forma visual. E para tanto usou muitas técnicas a exemplo da superposição do tempo passado, presente e futuro dos principais aspectos da vida de Alexei, ii) a utilização dos mesmos atores e atrizes em múltiplos papéis, a sobredeterminação do plano poético sobre o visual e o tratamento dos varias características com igual significado, tendo em vista explorar os recursos do cinema como a arte sintética na sua apreensão do mundo em geral e, dos personagens em particular, a exemplo da sua apreensão sintética do caráter de Alexei, seu alter-ego e, assim evidenciar que sua vida não lhe é própria mas uma concatenação de eventos cuja temporalidade se manifesta de forma não linear .

Tal não linearidade do tempo na narrativa de Tarkovski faz com que sua técnica dramatúrgica em O Espelho aparente ser desordena e, é para mostrar que tal procedimento não tem nada é que Spehen Borunda no seu ensaio Sculptures in Time Pt. IV: Tarkovsky’s THE MIRROR (2017) tenta desvelar o sentido e a lógica temporal implícito na narrativa de Tarkovski em o Espelho. Este intento é materializado por meio do resgaste de algumas instrumentalizações da relação com o tempo semelhantes, tanto na literatura como na física para evidenciar uma concepção do tempo na qual está ausente uma clara delineação do passado, presente e futuro e, na qual se ancora Tarkovski. No caso da literatura, este intento é feito por meio do argentino Jorge Luis Borges ( “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius,”) e do norte-americano Kurt Vonnegut (Slaughterhouse Five,1969) e, no caso da física via Stephen Hawking em A Brief History of Time.

Em Borges de “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius,”, Stephen Borunda ressalta a epistemologia de uma compreensão particular da temporalidade:“[T]he present is undefined, that the future has no other reality than as present hope, that the past is no more than present promemory.”. Enquanto que em Kurt Vonnegut Slaughterhouse Five (1969), ele ressalta na descrição do personagem Billy Pilgrim da metamorfose de seu “grasp of time” ocorrido na sua viagem a planeta alienígena leva-o a tomada de consciência que “ All moments, past, present and future, always have existed, always will exist.”, o que levou o personagem a concluir que “”It is just an illusion we have here on Earth that one moment follows another one…” E, por fim, ele ressalta que Stephen Hawking em A Brief History of Time nos chama atenção que “the laws of science do not distinguish between the backward and forward directions of time.” E, a partir destes resgates que evidencia a similaridade com o manejo do tempo por Tarkovsky em O Espelho, ou seja, que todo o tempo amalgama o passado, o presente e o futuro, ou seja, são inexistente enquanto construções independentes. [BORUNDA, 2017]

A partir dessa visão dos tempos como simultaneidade ele chama atenção para sua presença na vertebração do filme-manifesto de Tarkovski, O Espelho:

“In The Mirror, Tarkovsky’s film implicitly explores such ideas about non-linear temporality by showing the lives of the protagonist representing Tarkovsky named Alexei, along with his wife Natalia, his mother Maria, his father, and his son Ignat as not just interrelated or interdependent – but one. Timelines and perspectives recede into each other. However, these individuals are also impacted by current and past global events as they contributed to the zeitgeist of the post-WWII world. Thus, Tarkovsky also features a fairly extensive amount of documentary footage from various global conflicts from the epoch. All of time – from the intrapersonal (even dreams) to the interpersonal – plays upon itself in its depiction of a life. [BORUNDA, 2017]

Enfim, O Espelho é um filme-manifesto do Tarkovisky, o pensador do tempo pela instrumentalização de forma radical da sua visão do tempo como simultaneidade, a partir do qual esculpindo o tempo constrói o personagem alter-ego evidenciando sua compreensão do cinema como uma arte mimética e sintética e de si mesmo, como sujeito e cineasta. Ao mesmo tempo que pode ser considerado um filme-manifesto da sua sua cinema como um sintética e mimética.

BIBLIOGRAFIA

AUMONT, Jacques., (2004) Las Teorias de los Cineastas (La concepción del cine de los grandes directores). Barcelona: Paidós, 2004

BORUNDA, Stephen., (2017) Sculptures in Time Pt. IV: Tarkovsky’s The Mirror IN Film Inquiry, 16 de março de 2017. https://bit.ly/2XcOe8x

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Ihering Guedes Alcoforado
Ihering Guedes Alcoforado

Written by Ihering Guedes Alcoforado

Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal da Bahia.

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