O ENFRENTAMENTO DO COVID-19 NO BRASIL: Uma Aproximação Crítica ao Modelo do Presidente Bolsonaro — Ihering Guedes Alcoforado

Ihering Guedes Alcoforado
8 min readJun 3, 2020

--

Nesta nota exploro o frame de Roberto Buffagni (2020) desenvolvido na sua análise dos diferentes estilos estratégicos de gestão de epidemia do COVID-19. Mas, para tanto, desloco seu objeto, os modelos chinês, alemão e italiano, pondo em seu lugar os modelos em debate Brasil: de um lado, o modelo proposto pelo Presidente Bolsonaro ancorado em parte, na imunidade da manada, e, em parte, no isolamento vertical; e, do outro, o proposto por alguns governadores e prefeitos e que é focado no combate ao contágio por meio de medidas de isolamento horizontal.

E, me restrinjo ao modelo proposto pelo Presidente Bolsonaro, o qual se caracteriza pelo fato de evitar controlar o contágio por meio do isolamento horizontal, configurando-se com uma variante do modelo alemão e britânico na fase inicial do ciclo, quando se concentraram no cuidado dos doentes, embora do Presidente Bolsonaro se diferencie daqueles por propor o isolamento, só que vertical.

Nesta direção, inicialmente, chamo atenção que o Modelo insinuado pelo Presidente Bolsonaro tem subjacente a) um cálculo de custo / benefício e ii) uma escolha em sacrificar uma parte da população, em benefício de uma parte da economia. Sua maior ou menor eficácia depende, portanto, da capacidade de resposta do serviço nacional de saúde, em particular do número de vagas disponíveis em unidades de terapia intensiva. Isto porque em decorrência das características do coronavírus: alta contagiosidade, porcentagem limitada de resultados fatais (diretos ou decorrentes de complicações), mas porcentagem relativamente alta (cerca de 10%, parece-me) de pacientes que precisam de tratamento unidades de terapia intensiva. Deste fato, emerge o primeiro problema como este modelo e de natureza operacional, já que é pouco provável que um serviço nacional de saúde possar fornecer os cuidados necessários para que todo os pacientes seja hospitalizado, determinando ex ante que uma parte da população seja condenada à morte num montante que dependerá da capacidade do sistema de saúde, da composição demográfica da população (idosos e doentes crônicos são mais vulnerávies) e de outros fatores imprevisíveis, como possíveis mutações do vírus.

A caracterização do modelo implícito na sugestões propostas pelo Presidente Bolsonaro pode ser extraído das seguintes constatações e contrastes:

1. A adoção do “modelo dos governadores” (contenção da por meio do isolamento horizontal) tem custos econômicos devastadores

2. A parcela da população pré-condenada à morte é composta em grande parte por idosos e / ou pessoas já doentes e, portanto, seu desaparecimento não compromete não apenas a funcionalidade do sistema econômico, mas se alguma coisa o favorece, aliviando os custos do sistema de pensão, saúde e assistência social a médio prazo, desencadeando um processo economicamente expansivo graças às heranças que, como já aconteceu nas grandes epidemias do passado, aumentarão a liquidez e a riqueza dos jovens com maior propensão a consumir e investir do que para os mais velhos.

3. Aumentar o poder econômico-político do Brasil, em comparação com seus concorrentes que adotam o modelo adotado pelos governadores e prefeitos, os quais deverão pagar pelos danos econômicos devastadores que isso acarreta na operação dos seus negócios. [1]

Ou seja, o modelo pretende, implicitamente, criar as condições para que as empresas brasileiras não se aproveitem as dificuldades dos concorrentes que, por ventura, adotem o modelo de restrição, já que as empresas brasileiras no rastro da liberação insinuado por Bolsonaro podem ganhar quotas de mercado significativas e ampliar sua influência econômica e política no médio prazo. Em suma, a concepção do modelo proposto pelo Presidente Bolsonaro deixa transparecer uma orientação bélica, o que tem a vê com sua formação.

Atentem-se que tal orientação bélica se manifesta na escolha de sacrificar conscientemente uma parte da população, o que é de fato uma escolha típica de tempos de guerra , quando é normal, por exemplo, privilegiar o tratamento médico e o suprimento de alimentos dos combatentes sobre os cuidados e alimentos de todos os outros, mulheres, idosos e crianças, e, mesmo assim, dentro dos limites impostos pelo moral da população.

Em função disso, uma tentativa de justificar o modelo de Bolsonaro se dá por meio de sua associação a um suposto interesse da República, do Estado brasileiro, o qual toma seus concorrentes no mercado não como adversários, mas como se fossem inimigos. É como se a competição econômica fosse uma guerra , que difere da guerra real pelo mero fato de que exércitos não se confrontam; mas, é tão ou mais severa e cruel, porque não há lei ou honra militar. Em função dessa justificativa, é natural, portanto, que o modelo proposto pelo Presidente seja apoiado pelo business porque podia abrir uma janela de oportunidade imediata para nossas grandes empresas, assegurando uma vantagem estratégica de médio e longo a alguns setores estratégicos, a exemplo do agronegócio e mineração.

Mas, a despeito deste apoio das grandes empresas, o fato é que o modelo proposto pelo Presidente Bolsonaro não foi implantado em decorrência de múltiplos fatores, entre os quais ficou evidente a incapacidade do Modelo de si a) articular os stakholers e de b) superar a divisão politica nacional.

A incapacidade de articulação revelou-se na impossibilidade de atender os dos dois requisitos institucionais essenciais para sua conformação, i.e., a existência de i) um estado e de ii) uma nação (mesmo que multicultural) alinhada a um projeto hegemônico e dispostos a não poupar vidas, em especial dos mais vulneráveis.

Já a incapacidade de superar a divisão política decorre, tanto no âmbito do exercícios das liberdades (liberdade negativa vs. liberdade positiva), como no âmbito cultural. Com relação as restrições culturais a implementação do modelo insinuado pelo Presidente Bolsonaro (não conter o contágio e sacrificar conscientemente, ainda que não assumida, uma parcela da população). Ou seja, o referido Modelo propõe, implicitamente, que uma quantidade maior de pessoas se contaminem e adoeçam no curto prazo em percentual imprevisível, mas com certeza em um número não desprezível deles, incapaz de obter os cuidados necessários por causa de incapacidade do serviço de saúde prestar o cuidado médico necessário, morrerão. Mas, diante de tal cenário, o Modelo proposto pelo Presidente Bolsonaro não consegue superar a barreira cultural, ou seja, não consegue superar a divisão entre os que enfatizam o valor das vidas sobre os negócios a partir do exercício de uma liberdade positiva, de um lado, e os que enfatizam o valor dos negócios em detrimento das vidas a partir de uma liberdade positiva.[2]

Por outro lado, no âmbito politico, o Modelo sugerido pelo Presidente Bolsonaro ao exigir medida de restrição à liberdade apenas para os grupos de riscos, sinaliza uma aderência ao exercício da “liberdade negativa”, da qual o próprio Presidente Bolsonaro é um evangelista. Ma que introduz uma dificuldade na superação da diversidade. Isto porque, no âmbito do exercício da referida liberdade negativa, o Estado permanece contido no diz respeito ao “espaço de intervenção”, o que implica a vida diária continuar exatamente como antes ou que é uma vantagem para nossas grandes empresas, pois cria a janela de oportunidade a qual me referi ao tratar dos argumentos que visam justificar o modelo, mas que potencializa a difusão da epidemia. E, assim evidencia uma outra cunha divisória da sociedade brasileira, a que põe: de um lado, o governo Bolsonaro e seu exercício da “liberdade negativa” que se associa a uma visão do Estado como parte do problema; e, do outro a oposição de esquerda e sua inclinação histórica ao exercício da “liberdade positiva”, inclinada a conceber o Estado como parte fundamental da solução.

Enfim, o modelo proposto pelo Presidente Bolsonaro foi concebido sem a devida consideração da divisão da sociedade brasileira no que se refere tanto ao exercício da liberdade como no exercício da valoração cultural. Em função disso, não conseguiu superar a divisão entre os que enfatizam na esfera da política o exercício liberdade negativa, de um lado e, os que defendem o exercício da liberdade positiva, e, nem conseguiu superar a divisão entre os que põe a vida acima dos negócios, seja eles quais forem, e, os que põe os negócios, especial os estratégicos acima da vida dos outros, evidentemente.

O resultado é que se estabeleceu uma orientação federal baseada na liberdade negativa que não conseguiu se impor sobre as diretrizes estaduais e municipais baseada na liberdade positiva: mais uma jabuticaba brasileira.

NOTAS

[1]Este fato de que a economia global encontra-se em coma induzida e que existem países com vantagens comparativas, o que se associa tanto a saída mais cedo do confinamento em decorrência das medidas de isolamento mais flexíveis, a exemplo dos paises nórdicos e da Alemanha; ou ao controle da difusão geográfica em decorrência da vigilância epidemiológica como China, e, alguns paises asiáticos. [DUDA, 2020]

[2] Judith Butler expressa de forma emblemática na transcrição abaixo, o ponto de vista antagônico ao subjacente ao Modelo do Presidente Bolsonaro: “[…] Temos que deixar bem claro que todos os humanos possuem igual valor. E ainda assim a maioria de nossas ideias sobre o que é ser humano implica em estruturas radicalmente desiguais porque algumas pessoas tornam-se mais “humanas” ou “valiosas” aos olhos do mercado e do Estado. Nós ainda não sabemos como seria o humano se nos imaginássemos todos possuindo o mesmo valor. Essa seria uma nova imagem de humano, uma nova ideia e horizonte. Quando ouvimos falar sobre a “saúde” da economia sendo mais importante do que a “saúde” dos trabalhadores, dos idosos e dos mais pobres, somos convidados a desvalorizar o humano para que a economia reine acima dele. Agora se “saúde econômica” significa expor o trabalhador à doença e à morte, então nos voltamos à produtividade e ao lucro, não à “economia”. A brutalidade do capitalismo se apresenta às claras, sem nenhum pudor: o empregado deve ir trabalhar para conseguir viver, porém o local de trabalho é onde sua vida é colocada em risco. Marx já dizia isso na metade do século XIX e assustadoramente esse pensamento ainda se aplica à nossa realidade.”[BUTLER, 2020]

“Donald Trump walks back to the White House after appearing outside of St John’s Episcopal Church in Washington, D.C. Photo: Brendan Smialowski /Getty Images

BIBLIOGRAFIA

BUFFAGNI, Roberto., (2020) Epidemia coronavirus: Due approcci strategice a confronto IN Itália e el Mondo. Disponibilizado em 14 de março de 2020 e consultado em 2 de junho. https://bit.ly/3dtlGip

BUTLER, Judith., Quando a economia se torna o berro agonizante dos eugenistas — Entrevista com Judith Butler por Juan Dominguez e Rafael Zen e arte de Luciana Siebert. IN Medium, https://bit.ly/2U7qin3 Disponibilizada em 13 de Maio de 2020 e consultada em 03 de junho de 2020

COLARIZI, Alessandra., (2020) Dentro la risposta cinese alla COVID-19, tra società civile e mobilitazione di massa.IN ll Tascabile, https://bit.ly/2XS5IrR Disponbilizado em 01 de junho e consultado em 02 de junho de 2020

DUDDA, Ricardo., (2020) La Grande reclusión y el futuro del capitalismo IN Nueva Sociedade, n. 287, Maio-Junho, 2020

--

--

Ihering Guedes Alcoforado
Ihering Guedes Alcoforado

Written by Ihering Guedes Alcoforado

Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal da Bahia.

No responses yet