O CRIADO (The Servant, 1963)

Ihering Guedes Alcoforado
3 min readOct 3, 2022

IHERING GUEDES ALCOFORADO

O filme de Joseph Losey, The Servant (1963), tem o roteiro do dramaturgo inglês Harold Pinter baseado em livro com o mesmo título de Robin Maugham, dando inicio a uma colaboração que se estendeu para muitos outros filmes.

Um destaque do filme são os múltiplos registros que se articulam de forma harmoniosa, por meio de um registro metafórico próprio do filme que se caracteriza pelo mostrado ser apreendido não só por imagens “realista”, mas principalmente pelo recurso a metáforas e elipses cinematográficas que cercam o “real”.

O “real” é mostrado a partir de um único núcleo dramatúrgico focado em quatro personagens, tendo no centro Barrett (Dirk Bogarde), o criado e Tony (James Fox), o jovem nobre inglês, a namorada de Tony, a pseuda sofisticada (Susan) e a vulgar Vera (Sarah Miles), os quais se envolvem um processo de decadência coletiva, provocada por fatores exógenos macro políticos associados a perda dos fundamentos econômico e, potencializado por fatores endógenos, associado as convenções sociais, as quais ancoram o estilo do Tony, o jovem nobre.

Esse processo é apresentado por meio de uma metaforização naturalística, que constrói uma representação do processo em curso como determinado tanto por fatores externos como internos, os quais são atados pelas suas associações as estações do ano, em especial a) a primavera e b) o outono, com a temperatura: i) quente e ii) frio.

Um registro da metaforização naturalística externa é expressa por meio da conjunção primavera e outono como as duas etapas do processo vivido por Tony (James Fox), o jovem nobre inglês. A primavera é expressa pelas flores que decoram a nova casa de Tony (James Fox) no início do filme, que no final é mostrada murcha (Outono) metaforizando a degradação de Tony já sem o respeito do seu criado, de Susan sua namorada, da sanidade, da dignidade, e do estatuto social. Enfim, a vitalidade da primavera do início do filme cede lugar à decadência do outono do final do filme.

Já a metaforização naturalística interna é feita por meio da temperatura, a qual é posta com uma grande carga simbólica que sinaliza a evolução das relações entre as personagens, ora as aproximando (a água quente que o criado traz para Tony colocar os pés enregelados), ora mobilizando o desejo de Tony e Vera( Sarah Miles)

A evidenciação do processo é completado pela apresentação das suas causas externas por meio de algumas elipses cinematográficas, a omissão das imagens dos fatos que, em última instancia determina a decadência de Tony, a exemplo da ausência de qualquer imagem que se possa associar a economia colonial que é posta como a tábua de salvação do nobre inglês que acabou de chegar da África, como também do Brasil e da Amazônia para onde espera ir Tony, o que acaba por não acontecer.

Enfim, é por meio da metaforização e das elipses cinematográficas que a fragilidade e contingência da relação senhor e escravo é posta em torno da qual se articula o filme. A metaforização fica por conta da associação do processo a um ambiente natural e social em constante mudança, seja em decorrência de processos naturais como é o caso das estações do ano, seja associado a processo sócio-histórico, a exemplo da decadência do Império britânico, cujo legado sócio-histórico é apresentado como os fundamentos do estilo de Tony, que ao deixar de existir, o impede de manter o padrão de vida. Como agravante desse processo é posto a flexibilização das convenções que interdita a relação amorosa entre as classes, criam-se as condições que o empurram para além da decadência econômica, empurrando-o para a degradação moral, configurando o que chamo de uma “decadência degradada’.

Mas, tudo isso é posto sem cair no planfletarismo da luta de classe, já que Joseph Losey opta por evidenciar, as linhas ténues que separam os que mandam e os que são mandados em decorrência tanto dos factores de ordem externa (o fechamento das janelas de oportunidade de ganho no terceiro mundo) como de ordem interna (atração sexual obssessiva pela “criada”) podem alterar os equilíbrios socialmente instituídos e reformular os jogos de forças.

Em função do exposto acima, podemos concluir que o filme evidencia como as perdas das referências tanto econômicas como convencionais nas quais se apoia esse micro universo da nobreza inglesa pode levá-lo num pequeno espaço de tempo a decadência degradada. Resumindo: um processo específico que pode ser generalizado.

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Ihering Guedes Alcoforado

Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal da Bahia.