MAIO 68: A Força da Revolta (Vladimir Safatle)

Ihering Guedes Alcoforado
3 min readApr 27, 2018

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Vladimir Safatle, A força da revolta.Folha de S. Paulo, 27/04/2018

A partir da semana que vem fará 50 anos que ocorreu o maio de 68. Neste contexto, é relevante lembrar que há várias maneiras de tentar apagar um acontecimento, em especial quando ele é um acontecimento complexo.

Aprimeira delas é fazer como fizera Raymond Aron e dizer que “maio de 68 não ocorreu”, que foi uma espécie de grande psicodrama social cujos resultados efetivos serão nulos. Outra maneira, mais utilizada, é criar um pseudo acontecimento. Por exemplo, quando falamos que maio de 68 foi, principalmente, uma “revolução sexual e de costumes”.

Pois se trata de uma maneira de transformá-lo em uma espécie de ante câmara para a pretensa liberalização da sociedade e para a integração mais efetiva da “aspirações juvenis” à sociedade de consumo.

Ou seja, o que se queria era aquilo que nossas sociedades liberais já realizariam naturalmente, no sentido de uma maior liberdade individual e maior poder de decisão pessoal.

No entanto, maio de 68 foi um acontecimento que ainda ressoa hoje, que nos coloca questões por ter permitido a emergência de lutas e desejos que ainda não fomos capazes de realizar.

Neste sentido, ele lembra todos esses acontecimentos reais que, a sua maneira, aparecem cedo demais e acabam por serem repetidos décadas depois, quando menos se espera.

Lembremos como maio de 68 não foi apenas uma revolta estudantil. Tratou-se também da maior greve geral espontânea da história, com a paralisação completa da França e a ocupação viral de fábricas por operários.

Esta greve geral escapa do modelo de reivindicação sindical (aumento de salário, negociação sobre o tempo de trabalho) por incorporar temas como cogestão das empresas, autonomia etc. A convergência entre revolta estudantil e greve geral demonstra com o real eixo de maio de 68 encontrava-se na crítica radical à sociedade do trabalho e ao regime de integração social em vigor na Europa, até então baseado no Estado do bem-estar social e na consolidação de um capitalismo de estado, aparecia como um modelo “perfeito” de gestão social.

A era chamada “anos gloriosas”, marcada por forte crescimento econômico e integração das classes desfavorecidas através da constituição de redes de assistência social, era vendido como um modelo capaz de eliminar confIitos sociais mais radicais.

No entanto, maio de 68 mostrou o contrário: a integração não era perfeita, a adesão aos valores da sociedade do trabalho estava longe de representar um ideal partilhado de autorrealização. O anticapitalismo do movimento era estrutural e virulento. Ou seja, 0 Estado do bem-estar social não servia para anestesiar conflitos sociais.

Além de uma recusa radical da sociedade do trabalho, maio de 68 representou também a primeira vez que a universidade aparecia como polo fundamental de sedição social. A universidade ocidental, cujo modelo foi criado por Alexandre von Humboldt no começo do século 19, tinha uma função clara deformação de elites e de integração da classe intelectual à condição de funcionário público.

Tratava-se de uma estratégia típica da lógica da Restauração, que visava e liminar os riscos de deriva revolucionária da classe intelectual, como se viu na Revolução Francesa.

No entanto, a universidade havia se transformado em um bastião de revolta,principalmente após a passagem da condição de universidade burguesa à universidade de classes médias.

Lembremos, por exemplo, como em 1900 onúmero de estudantes nas universidades francesas era de 30 mil. Em 1950,135 mil e, em 1968,587 mil. Este reposicionamento da universidade no interior da vida política e social dava a ela uma nova importância.

Tudo isto não poderia ser indiferente em um país como oBrasil, cuja juventude sentia-se particularmente sufocada por uma ditadura que demonstrara não ter dia para acabar.

Por isto, entre nós, maio de 68 ganhará uma dimensão de reorganização da luta contra a ditadura e o totalitarismo que merece uma discussão aparte.

REFERENCIA

Vladimir Safatle, A força da revolta.Folha de S. Paulo, 27/04/2018 |

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Ihering Guedes Alcoforado
Ihering Guedes Alcoforado

Written by Ihering Guedes Alcoforado

Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal da Bahia.

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