MACHADO DE ASSIS: Crime e Virtude, Verdade e Erro — Ihering Guedes Alcoforado

Ihering Guedes Alcoforado
3 min readJun 9, 2020

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As crônicas de Machado de Assis alimentaram-se em boa parte das notícias publicadas nos jornais da época e, quase sempre, foram tomadas pelo Bruxo do Cosme Velho, como pretexto para uma reflexão que desvelava os aspectos institucionais subjacentes aos fatos noticiados, trazendo a tona tanto as questões legais como as morais.

Na crônica de 26 de junho de 1885, Machado de Assis problematiza dois estruturantes de qualquer que seja o ambiente institucional: i) o de crime e, ii) o de verdade.

O conceito de crime é problematizado a partir de notícias que um certo Cristo júnior, de Sorocaba, falsificava e vendia uns bilhetes de loteria. Para Machado de Assis o fato:

“ Aparentemente, é um crime; mas se atentarmos bem, veremos que é, pelo menos meia virtude” A justificativa que apresentou para tal interpretação é que como se tratava do “[…] vício de um vício, podemos contá-lo como meia virtude.” [MACHADO DE ASSIS, 1959: pp. 496 e 496]

Note-se que a tipificação de ato como um crime para Machado de Assis não está associado ao ato em si, mas as suas consequências, o que depende do objeto sobre o qual ele foi exercido. No caso o ato criminoso, um vício pessoal, foi exercido sobre outro vício, o do jogo, o que se generalizado implica num desincentivo ao vicio do jogo. daí, ele poder considerar o vicio de falsificação de bilhetes de loteria como uma meia virtude.

Esta mesma perspectiva não essencialista (melhor seria dizer consequencialista) dos tipos de crime se manifesta na sua problematização da virtude e da verdade, a partir de um malfeito de um tal de Custódio de Limeira. No caso, a lógica do seu raciocínio toma como premissa o fato que “Se há uma virtude universal e outra nacional, por que não há de haver uma virtude municipal ?” E, arremata: Verdade em Sorocaba, erro na Limeira.”[MACHADO DE ASSIS, 1959:495]

A compreensão não essencialista da verdade e do erro, em Machado de Assis, decorre da sua espacialização: Sorocaba ou Limeira. Para ser mais preciso, a sua compreensão decorre da espacialidade das conseqüências do suposto malfeito: o preparo e venda de uma rés envenenada. O preparo foi feito em Sorocaba, mas o produto foi comercializado em Limeira, logo a conclusão de Machado de Assis é a seguinte: “para os ventres de Limeira, custódio é execrado; para os de Sorocaba é angélico”.[MACHADO DE ASSIS, 1959:496]

Em função do exposto acima, podemos estabelecer uma hipótese (melhor seria dizer uma chave de leitura) do referencial moral das analises de Machado de Assis dos costumes brasileiros em meados do século XIX expresso nas suas crônicas. A hipótese é que a estrutura moral subjacente as suas analises é consequencialista , o que nos permite sugerir a possibilidade de mobilização do legado da ética consequencialista: tanto a original formulada por Aristóteles, como a sua principal expressão contemporânea formatada por Hans Jonas por meio do Principio responsabilidade: Uma ética para as sociedades tecnologicamente avançadas.

Por fim, como no plano moral a ética da convicção potencializada por Kant e seus seguidores finalmente teve evidenciada, por meio da obra de Hans Jonas, suas aporias no âmbito das sociedades tecnologicamente avançadas, o que introduziu um retorno a ética consequencialista, é possível que Machado de Assis, no plano moral das suas análises, também estava muito a frente da sua época.

MACHADO DE ASSIS, (1959) Obra Completa III (Poesia, Crônica, Crítica Miscelânea e Epistolário). Rio: Ed. José Aguillar Ltd. 1959

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Ihering Guedes Alcoforado
Ihering Guedes Alcoforado

Written by Ihering Guedes Alcoforado

Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal da Bahia.

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