LE RAYON VERT de Eric Rohmer

Ihering Guedes Alcoforado
7 min readSep 20, 2022

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IHERING GUEDES ALCOFORADO

Seria Eric Rohmer o mais livre dos nossos cineastas? Em um momento no qual o mais medíocre dos filmes standard esconde sua vaidade debaixo de um verniz impecável de profissionalismo técnico, no qual qualquer um sabe decupar uma cena com um número suficiente de complicações inúteis para dar a ilusão de ser um profissional, Eric Rohmer escolhe retornar à fonte primeira da sua arte, ao lado do Rossellini de Stromboli. Se lembrarmos de sua profissão de fé na entrevista que abre o Le Goût de la beauté[1]: “O essencial não é da ordem da linguagem mas da ordem do ontológico.” Teria Rohmer sentido, após seus últimos filmes, que o seu cinema era ameaçado por um progresso na ordem da linguagem que arriscava afastá-lo, mesmo que apenas tendencialmente, do essencial, e que ele precisava, de uma certa forma, retornar a suas origens cinematográficas? Não seria nenhuma surpresa vindo de alguém que sempre afirmou que o melhor a se fazer para ir em frente na arte era guardar seu laço com o passado. Acontece que esse dito passado, hoje, não é nada menos que a moda. Também Raio Verde aparece para nós, em uma paisagem onde 99% do cinema está do lado da linguagem, ou da simulação, como decididamente contra-corrente e ao mesmo tempo, com Thérèse de Alain Cavalier, um dos filmes mais vivos do ano”[A. BNERGALA]

Le Rayon vert é um filme controverso. Para muitos, marcou um retrocesso na obra de Rohmer, surgindo como “filme menor”, “aventura gratuita” no percurso do cineasta. Para outros, pelo contrário, a exemplo de Alain Bergala, para quem nesse filme — “Rohmer escolheu voltar à própria origem da sua arte”, regressar ao tão amado Rossellini, e ao essencial, que na entrevista que inaugurou a sua colectânea “Le Gout de la Beauté” afirmou ser não da ordem da linguagem mas da ordem da ontologia: “L’ essentiel n’ est pas de l’ ordre du langage mais de l’ ordre de l’ ontologique”.[COSTA,

De forma que no contexto da cinematografia de Eric Rohmer, esse filme foi conceibo como uma espécie de retorno ao amadorismo. Segundo sua declaração ele se sentiu incomodado com o sucesso de Pauline a la plage e Les Nuits de la pleine lune e sentiu a necessidade de retornar à estética crua que estava na origem da Nouvelle Vague. [FAWELL, 1993:780]O resultado desse retorno a um estilo mais primitivo e um filme que não tem medo de se desviar de sua linha narrativa e de permanecer por longos períodos de tempo e de forma documental nas vistas e sons do verão. [FAWELL, 1993:780]

Nesse retorno a improviso foi a marca, pois para filmar Le Rayon vert Rohmer pegou a estrada sem roteiro ou cronograma e com uma equipe de três mulheres. A última vez que ele filmou de maneira tão livre e espontânea foi para outro filme de verão, La Collectioneuse, levando a especular que Rohmer encontra inspiração para um estilo de filmagem mais livre e aberto no lazer e abertura do verão.

Em função disso Alain Bergala (1) faz uma associação entre a produção do film e a personagem, ao ressaltar semelhança entre as férias de Delphine — sem rumo, em busca de encontros — e as filmagens de Rohmer das férias de Delphine — igualmente sem rumo, abertas a mudanças espontâneas na programação [FAWELL, 1993:780]

Não há personagem para igualar Delphine em Le Rayon vert em termos de
sofrimento acumulado no verão na obra de Eric Rohmer, embora seja um tipo diferente de sofrimento que a de Adrien em La Collectioneuse, Jerôme em Le Genou de Claire, ou Marion em Pauline à la plage. O verão traz nesses personagens uma espécie de de confusão sexual e hipocrisia sobre o amor.

Joel Magny no seu trabalho sobre Eric Rohmer chama atenção que Delphine, a atormentada heroína de Le Rayon vert, difere nitidamente de
outros heróis de Rohmer: “Por causa de suas origens humildes e seus problemas mocional, ela não tem o domínio da linguagem tão capital no universo rohmerian. como o de dinheiro” [MAGNY, 1986:192]. [FAWELL, 1993:787]

Bergala, por sua vez, considera que ODelphine expressa um caso de solidão contingente — muito contemporânea — que não tem nenhuma semelhança com a solidão essencial, constitutiva, de personagens como aqueles de David Goodis ou de Emmanuel Bove. Para ele, se Delphine se encontra, de repente, confrontada com a solidão, às vésperas de suas férias de verão, é quase por acidente, como resultado de dois abandonos consecutivos: o seu relacionamento com um homem acabara de terminar, e uma amiga com a qual ela planejava viajar cancelou na última hora. Depois dessas duas quebras no seu funcionamento afetivo e social habitual — ela tem visivelmente muitos amigos e toda uma rede de relações — Delphine descobre a solidão como um curto-circuito. Delphine tem também uma maneira estranha de lidar com essa solidão inesperada. Ela decide, a partir dos conselhos carregados de bom senso de suas amigas, que é preciso “agitar” as coisas, encontrar as pessoas, e quem sabe — talvez — o amor. Mas tem algo nela que resiste a essa decisão banal de reagir contra a sua solidão. Ela vai percorrer a França das férias de verão de um lado para o outro para tentar escapar disso, mas a cada encontro ela vai fugir. Na verdade, Delphine está constantemente se protegendo daquilo que ela parecia procurar. Basta que um homem se aproxime ou que alguém se interesse por ela que ela parte rapidamente em retirada. Mais de uma vez o espectador pode se sentir irritado, pois Delphine aparentemente recusa, mesmo quando algo a faz sorrir, tudo aquilo que ela encontra pelo caminho que poderia levá-la a se aproximar daquilo que nós acreditamos ser o que ela procura. [BERGALA,2021]

Delphine tem pouca riqueza, confiança ou facilidade com as palavras para
criar a tela verbal que outros protagonistas Rohmer fazem. Onde a maioria dos heróis Rohmer estão na posição de mentir sobre seus relacionamentos, Delphine não consegue sequer estabelecer um [FAWELL, 1993:781]

O mais que baliza nossa compreensão de Delphine é a cena em que ela está jantando com amigos de um amiga com quem ela relutantemente concordou em sair de férias. Enquanto os amigos questionam sua convidada, fica claro que Delphine se considera um pouco superior às outras em seu vegetarianismo e sua reverência pela natureza e
amor à solidão — uma auto-imagem que é tornada sem sentido pelos nas cenas em Le Rayon vert, nas quais Delphine vagueia pelos caminhos da natureza,entediado e sem direção, obviamente desejando companhia. [FAWELL, 1993:781]

Delfina é assustada com as pessoas e ela justifica sua incapacidade de fazer amigos por uma auto-afirmação byroniana de solidão e adoração da natureza. Na verdade, ela é mal equipada para a ficar sozinha com a natureza, e suas férias de verão férias prova isso. [FAWELL, 1993:781]

O filme descreve, portanto, de forma muito fria e objetiva as tentativas fúteis de Delphine para encontrar um lugar onde ela possa passar as férias confortavelmente sozinha. Nós não levamos a dor de Delphine
totalmente a sério porque sabemos que ela, em grande medida, é uma representação magistral desse tipo de personagem de quem George Eliot tanto gostava, o manso cordeiro que é, no quietismo de sua alma, agasalha uma egoísta que é posta num processo não racionalizado e absurdo: uma via crucis durante suas férias.

Via crucis Delphine pontuado por acasos:

Na quarta-feira, 5 de Julho, precisamente um mês antes do termo do filme, Delphine, passeando na rua, encontrou caída uma dama de espadas. A música e o grande plano sublinham esse encontro, efectivamente o único encontro importante que Delphine teve, antes de a 2 de Agosto encontrar outra carta — o valete de copas — (mesma música, mesmo grande plano) e, logo a seguir, ouvir a história do raio verde. No racionalizado (e absurdo) mundo de Delphine, esse é o toque do irracional (de outro absurdo) a que ninguém, nem ela, parece dar muita importância, mas que introduz no filme a lógica subterrânea do milagre. A dama de espadas comanda o seu ciclo de azar, como o valete de copas vai comandar o seu ciclo de sorte. Porquê? Por razão nenhuma, e por todas as razões que introduzem nesta obra a sua dimensão alucinantemente irracional e alucinantemente bela.[COSTA, 2022]

Enfim, como bem ressaltou João Bernard da Costa, parecendo tocar o lado mais vulgar de todas as aparências, Rohmer está já para além de todas elas. E fez com Le Rayon Vert o seu filme mais radical, mais denso, mais obscuro e mais luminoso.

NOTAS

[1] Bergala — “Rohmer escolheu voltar à própria origem da sua arte”, regressar ao tão amado Rossellini, “regressar a Stromboli” para usar o título do artigo de Bergala. E é ainda este crítico quem recorda, a propósito de Le Rayon Vert, a profissão de fé de Rohmer na entrevista que inaugurou a sua colectânea “Le Gout de la Beauté”: “L’ essentiel n’ est pas de l’ ordre du langage mais de l’ ordre de l’ ontologique”

BIBLIOGRAFIA

BERGALA, Alain.,Retorno à Stromboli http://vestidosemcostura.blogspot.com/2021/04/retorno-stromboli.html. (Retour à Stromboli foi originalmente publicado na revista Cahiers du Cinéma, n° 387, setembro de 1986)

COSTA, João Bernard., LE RAYON VERT / 1986 (O Raio Verde) um filme de Eric Rohmer. Cinemateca Portuguesa. Museu de Cinema.https://www.cinemateca.pt/CinematecaSite/media/Documentos/2022-05-10_LE-RAYON-VERT.pdf

DODUIK, Véronique., Revue de Press du « Rayon Vert » Cinemateque, 5 de feveiro de 2019. https://www.cinematheque.fr/article/1372.html

FAWEL, John., 1993. Verões opressivos de Eric Rohmer na The French Review, v. 66, não. 5,

MAGNY, Joel. Eric Rohmer. Paris: Rivages, 1986

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Ihering Guedes Alcoforado
Ihering Guedes Alcoforado

Written by Ihering Guedes Alcoforado

Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal da Bahia.

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