J-L GODARD POR LAURA MULVEY

Ihering Guedes Alcoforado
5 min readSep 15, 2022

--

IHERING GUEDES ALCOFORADO

“A mulher faz obras abrigando homens. Tudo que o homem pode fazer para se encontrar em pé de igualdade relativa é fabricar obras: pintura, literatura ou política, guerras, desemprego, comércio. No fundo, o homem me interessa pouco.” [GODARD, 2015]

O recente passamento de J-L Godard tem sido motivo de reflexões sobre seu legado, a partir de diferentes escopos: indo desde comentário de um filme até chegar a toda sua filmografia. Como de praxe nessas ocasiões tende-se a não problematizar o legado do morto, ficando a exceção por conta das feministas na sua relação de amor e ódio com Godard que tem sua origem em Laura Mulvey ao reconhecer como crítica de cinema que Godard é brilhante, mas que tem a preocupação de completar seu raciocínio como crítica feminista de cinema ao afirmar que, no entanto, nunca parece ter se libertado completamente.

A apreensão do legado de Godard de uma perspectiva feminista, em especial na corrente inspirada na psicanálise tem uma das suas referências canônicas em Laura Mulvey e nos seu ensaio seminal “Visual Pleasure and Narrative Cinema” (1975).

Nesse ensaio , Laura Mulvey trata a forma do filme como estruturada pelo inconsciente patriarcal cujo desvelamento revela o paradoxo do falocentrismo que envolve o cinema como dependente em todas suas manifestações da castração da mulher. condição sine qua non para o estabelecimento do significado e o sentido do mundo. O referido paradoxo é anunciado por meio de uma representação dicotômico da mulher por meio de registros secretos e manifestos que se projetam como artificiais e verdadeiros.

Em Fetishism and Curiosity (1996) uma coletânea de ensaios, escritos entre 1991 e 1995, ela explora as virtualidades do conceito de fetichismo desenvolvido por Marx em relação à mercadoria em O Capital (1867) — no qual ela ressalta uma reificação das relações sociais e uma personificação das coisas, a qual é potencializada pela sua instrumentalização dos insights dee Freud em Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade(1905) — por meio do que chama atenção para o processo de substituição de uma parte do corpo ou de um objeto inanimado pelo objeto sexual: o substrato fetichizante que envolve algumas personagens emblemáticas de Godard.

Em Fetishism and Curiosity Laura Moulvey potencializa, portanto,Marx por meio de Freud, para questionar a imagem e sua escrita, sua produção e sua recepção através dos esquemas padronizados de um sistema de diferenciação entre os sexos marcado pelo capitalismo e pelo imperialismo, hoje, provalvelmente seria pelo neoliberalismo.

O ponto alto desse program é o ensaio The Hole and the Zero: Godard´s Visions of Femininity, o qual é aberto com uma citação de artigo de Godard no Cahiers du Cinéma no qual de 1952, no qual segundo Laura Moulvey “Gordard associa a beleza feminina, quase que ontologicamente, com o cinema”. É a partir da percepção acima que ela trata de evidenciar o paradoxo da “beleza cinemática” das suas atrizes ao chamar atenção para uma dicotomia já tratada em “Visual Pleasure and Narrative Cinema” (1975) e em Image of Woman, Image of Sexuality (1980:85). [1]

No primeiro ensaio ao ressaltar na representação das personagens femininas emblemáticas de Godard uma relação simbiótica entre os registros secretos e manifestos que se projetam como artificiais e verdadeiros. Na segundo ensaio Laura Moulvey ressalta o que chama de “ Godard romantic heritage” no qual a mulher é dividida em aparência que pode ser gozada e em essência que só é “ knowable at risk, deceptive and dagerous.

É essa relação simbiótica e paradoxal das personagens femininas de Jean-Luc Godard que fascina Laura Mulvey (2021), o que pode ser debitar em parte a sua leitura de Marx (“O Capital”) e Freud (“Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” ), a partir de quando ela passou a ver os filmes de Godard com um ponto de vista diferente. Ou seja, como um cineasta pensante, que, no seu mostrar e dizer era perfeitamente consciente da relação entre a função da mulher na sociedade de consumo e a construção da mulher como mercadoria.

O fascínio de Laura Mulvey também se deve ao fato dele ter estabelecido ao longo da sua cinematografia uma série de elos formando uma cadeia, entre a figura da mulher como consumidora, a mulher que se constrói como mercadoria e a mulher consumida como prostituta. Por exemplo, na leitura de Laura Mulvey de Une Femme Mariée (1964), ela ressalta a justaposição de imagens comerciais e a aspiração de uma mulher para alcançar a perfeição da feminilidade, que não é realmente ela, mas apenas o desejo de consumo da sociedade, o que é uma expressão cinematográfica da dicotomia paradoxal aludida acima.

Assim sendo, aos olhos de Laura Mulvey critica de cinema J-L Godard é brilhante, enquanto que no entender de Laura Mulvey feminista J-L Godard nunca parece ter se libertado completamente. Donde nada mais natural que a Laura Mulvey critica feminista de cinema entenda que os filmes de J-L Godard são uma mina de ouro para as feministas.

Enfim, GODARD QUE SE CUIDE.

NOTAS

[1] O livro e texto de Laura Mulvey em particular é bastante heterodoxo na forma, o que se explica pelo “clima” experimental existente no momento de sua concepção e edição, a qual é recuperado na tese de HELM-GROVAS, 2018]

REFERÊNCIAS

GODARD, J-L 1952

HELM-GROVAS, Nicolas Helm-Grovas., Laura Mulvey and Peter Wollen: Theory and Practice, Aesthetics and Politics, 1963–1983. Royal Holloway, University of London PhD, Media Arts. 2918

MULVEY, Laura., 1975 Visual pleasure and narrative cinema IN : Screen, 1975, v.16, n. 3, pp. 6–18

MOULVEY, Laura., 1992 The Hole and the Zero. The Janus Face of the Feminine in Godard IN MACCABE, Colin & BELLOUR, Raymond (eds.) Jean-Luc Godard: Son + Image. New York: Museum of Modern Art, 1992

MOUVEL, Laura., 2021 “Les films de Jean-Luc Godard sont une mine d’or pour les théories féministes” IN Radio FranceSamedi 1 mai 2021 https://bit.ly/3qD45wX

MOULVEY, Laura & MaCABE, Colin.,1980 Image of Woman, Image of Sexuality. IN MaCABE, Colin.,& MOULVEY, Laura., 1980 Godard: Image, Sound, Politics. The Macmillan Press Ltd.

Godard no Cahiers du Cinéma no qual de 1952

--

--

Ihering Guedes Alcoforado
Ihering Guedes Alcoforado

Written by Ihering Guedes Alcoforado

Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal da Bahia.

No responses yet