INTOLERÂNCIA EXTREMA E TOTALITARISMO: Do Coronel Ustra à Marighella — Ihering Guedes Alcoforado

Ihering Guedes Alcoforado
5 min readNov 10, 2021

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François Hartog em Régimes d´historicité anuncia nossa entrada na era do prsentismo e do memorialismo os quais compartilham a abdicação da história objetiva a favor da história subjetiva, configurando a historicidade de nosso tempo presente. Hisoricidade essa que no seu entendimento se manifesta em dois sintomas: i) a onipresença de memória e ii) a obsessão pela preservação do patrimônio, transformando o monumento em memoria. [1]

Nossa hipótese é que essa historicidade se revela o meio do caminho para se descartar a autêntica análise do passado fundada no fato histórico, optando pelas vivências subjetivas, das recordações e rememorações emolduradas em narrativas transhitóricas focada no presente.

Um das características desta inflexão é a consideração como objeto histórico as vivências subjetivas, o que tem como consequência a criação das condições de possibilidade da problematização do conceito de História como um metaconceito de vocação universalista que expressa uma coletividade singular transcendental. Comunidde essa portadora de um grande número de experiencias humanas e suas memórias coletivas, todas até então subsumidas na História com P maipusculo.

Ou seja, enfatiza-se os aspectos pluralistas, setoriais e contingentes de determinado objeto histórico, e, passa-se a falar não mais de História, mas de histórias. E, assim, aprofunda-se o fosso entre a realidade factual e sua apreensão linguística o que nos leva a crer que estamos vivenciando uma transição profunda, tanto semântica como política.

Transição semântica decorrente do reflexo nas expressões linguistica manejadas nos novos estudos históricos das mudanças na experiências históricas vivenciadas pelos inúmeros grupos que formam uma nação linguistica territorializada, a exemplo da brasileira. A transição é magnificada pela própria natureza da linguagem que se revela sempre ambígua e ao mesmo tempo receptiva e produtora da consciência das mudanças em curso na realidade.

As referidas ambiguidades e criatividade da linguagem política o que anuncia uma possível transição política profunda, a que expressa seus contornos de forma exemplar nos discurso da intolerância política do nosso tempo presente fundado na semantização das “plavras mágicas”, e , não só da semântica do conceito de História, mas nas mútiplas resemantização do concieto de Democracia e de Liberdade, por meio das quais cria as condições de possibilidades para a reemergência da sedução totalitária assumida, num passado recente, tanto pelos defensores da ditadura do proletariado como pelos defensores da ditadura do capital.

No Brasil de hoje, a trajetória na direção totaliária é tortuosa mais perceptível nos seus contornos, donde ser imperativa não só sua enunciação, mas principalmente sua denúncia. O ponto de partida da intolerância política recente no Brasil foi semeada num primeiro momento com o “nós vs. eles” de Carl Schmitt reposicionado pelo ex-Presidente Lula na sua dicotomização da política brasileira e, que resultou na atual polarização.

A dicotomia se disseminou rapidamente e consolidou uma polarização que, pavimentou uma identificação dos aderentes dos dois polos com os icones da intolerância extrema que se manifestou no Brasil de forma aguda, num momento histórico muito particular, quando se deu o abandono da luta parlamentar pela luta armada: Carlos Alberto Brilhante Ustra e Marighella.

Do lado da direita, o sintoma é a identificação crescente com Carlos Alberto Brilhane Ustra, coronel do Exército condenado em 2008 pela Justiça brasileira como torturador durante a Ditadura Militar (1964–1985), um representante emblemático da intolerância no campo da direita, recentemente, elevado ao panteão dos heróis nacionais

Do lado da esquerda, a reação adota o mesmo diapasão com o reavivamento da memória do icone da intolerância extrema no campo da esquerda: Marighella. A senha para a retomada da identificação com esse personagem foi à chegada de “Marighella,” de Wagner Moura, ao circuito. O filme segundo o crítico José Geraldo Couto tem tudo para se tornar um filme-evento, como foram, cada qual no seu momento, Central do Brasil, Cidade de Deus, Tropa de elite e Bacurau. Isto porque, ainda segundo o referido crítico, ao tocar em algum nervo exposto da sociedade, o filme transcende o espaço específico do cinema e se torna um fato político e cultural. Donde não ser surpresa que tenha gerado o que o crítico Rodrigo Fonsseca nomeou de uma “reação (celebrativa)”: A mostra Ditadura Nunca Mais — filmes para não esquecer e que contribui não só para colocar a Marighella no panteão dos heróis nacionais como pautar uma nova históira, com p minúscula, que se articula como uma narrativa que estabelece seu sentido e telos não nos fatos históricos objetivos em si, mas nas memórias históricas subjetivas dos considerados vitimizados..

Ambas posturas compartilham i) a inclinação de tratar os ícones do período da intolerância extrema como heróis nacionais e ii) a desconsideração dos fatos históricos tanto no campo da direita, como do campo da esquerda,e o privilegiamento das memórias e suas histórias com p minúsculos, o que resulta no encobrimento do fato histórico que que a maioria da população não se identifica, como repudia essas intolerâncias extremas, tanto a direita como a esquerda.

O resultado desse giro no regime de historicidade é o consequente surto identificatório com os ícones da intolerãncia extrema, apatir do qual se busca construir histórias com p minúsculo, quando simples narrativas pautada pelo marketing político. Um outro resultado é perda da oportunidade de revisitar-se os fatos históricos em sua inteireza e, assim, recuperar as alternativas então postas e que foram descartadas tanto a direita como a esquerda e, evidenciar os equívocos nos dois campos que marcou o período da luta armada no Brasil e, a partir das falácias da soluções totalitárias que se colocam com o desdobramento natural das intolerâncias extremas tanto no campo da esquerda como da direita.

Enfim, esses movimentos equivocados a direita e a esquerda tem em comum a resemantização da Democracia e da Liberdade, de forma que já não se pode falar da Democracia e Liberdade, mas das democracias e das liberdades resemantizadas a la carte, Assim sendo, a superação desses equívocos no campo histórico envolve a produção de uma História com H maiúscula que apreenda por meio da sua totalidade a relação dialética estabelecida entre as diferentes históras com p minúsculo; enquanto que no campo cultural, pelo menos em parte, essa superação pode ser efetivado por meio do que um dos curadores da mostra Ditadura Nunca Mais — filmes para não esquecer prometeu mais não entegrou: “uma leitura plural da época e da luta que Moura retrata”; ou seja, o retorno a História com P maiúsculo.

NOTAS

[1] O objeto de Hartog são o que considera os diferentes regimes de historicidade, em especial seus momentos de crise, discrepâncias, limites e limiares, mudanças de paradigma. Parte da História como magistra vitae, na qual o presente e o futuro é considerado como um desdobramento do passado. Descreve os diferentes estágios desse regime na sua busca de entender a crise da historicidade de nosso tempo presente a qual no seu entendimento se manifesta em dois sintomas: i) a onipresença de
memória e ii) a obsessão pela preservação do patrimônio, transformando o
monumento em memorial. Apartir do que conclui que a conjunção desses dois fenômenos contribui à historicização de um presente multiforme e multívoco, suficiente em si mesmo, ao qual conceitua como “presentismo”.

REFERÊNCIAS

KOSELLECK, Reinhart., 2004 Historia/Historia, Madrid,Trotta, 2004

HARTOG, François., Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps. Paris: Le Seuil, 2003, coll. « La Librairie du XXIe siècle »

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Ihering Guedes Alcoforado
Ihering Guedes Alcoforado

Written by Ihering Guedes Alcoforado

Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal da Bahia.

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