COVID-19: Uma Aproximação Crítica à Contribuição de Sandro Mezzara by Ihering Guedes Alcoforado
No artigo “Uma Política das Lutas em Tempos de Pandemia”, o italiano Sandro Mezzara dá sua contribuição ao debate sobre o coronavirus, na qual sua trajetória profissional informa os três registros analíticos: i)o político no qual ressoa a radicalidade do “obrerismo” italiano e, ii) o econômico, especial a problemática das cadeias de valor (suuply chain) e iii) o da soberania nacional e da geopolítica, os quais são desigualmente desenvolvidos. No nosso entendimento, a ênfase de Sandro Mezzara recai no approach político que, inclusive, informa a estrutura analítica da sua argumentação, deslocando o registro logístico e o geopolítico como um apêndice no corpo do texto.
Nesta nota vou me restringir a sua abordagem política, a qual se estrutura a partir de uma diferenciação com a maior parte dos seus conterrâneos italiano por adotarem o que julga uma “atitude equivocada”. E, em função desta escolha a seguir devido minha apresentação em dois blocos: no primeiro introduzo o que ele considera a atitude equivocada dos seus conterrâneos italianos com relação a COVID-19 e que é focado no “controle”; e, no segundo introduzo o approach do Sandro Mezadra que é focado no “cuidado”. Na conclusão chamo atenção como seu deslocamento do foco abre uma janela de possibilidade e fundamentação da ação dos movimentos sociais.
COVID-19 E O CONTROLE
A atitude que Sandro Mezzaro considera equivocada é, segundo ele, compartilhados por consagrados filósofos italianos e que tem como referência “[…]uma espécie de cepticismo em relação ao COVID-19 e ao seu real perigo”, o qual se desdobra ao longo das observações e reflexões […] de como a propagação do coronavírus está a transformar a nossa sociedade”. A preocupação dos autores alinhados com esta perspectiva é que uma vez implementada determinada media numa situação excepcional e emergencial, ela vai “permanecer no repertório do politicamente possível”, o que leva a esses autores da esquerda italiana a focar-se sobretudo […] no aperfeiçoamento dos dispositivos de controlo em tempos de emergência.”
Enfim, mesmo não subestimando a questão do controlo, da expansão dos poderes do Estado e da subsequente promoção de uma política do medo — aspectos claramente presentes no cenário atual, Sandro Mezzara considera a atitude equivocada e, opta por outro recorte, deslocando a ênfase no “controle” para o “cuidado” e do qual passamos a tratar
SANDRO MEZZARA E O COVID-19: Do Controle ao Cuidado
Ao firmar sua atitude analítica divergente da dos seus conterrâneos italianos, Sandro Mezzara sugere que a
“[…] a discussão deveria começar pelo facto de que a propagação do coronavírus representa não apenas uma ameaça à saúde e à vida de milhões de pessoas (em primeiro lugar idosos e demais vulneráveis ao risco), mas também à manutenção dos sistemas de saúde”. [1]
Ou seja,
“[…] o coronavírus representa uma ameaça a algo de essencial daquilo que, no nosso debate, definimos como o «comum». A epidemia em curso expõe toda a fragilidade e precariedade do comum (bem como das nossas vidas), juntamente com a necessidade da «cura» — um tema salientado particularmente pelos debates feministas dos últimos anos.”
Em resumo, Sandro Mezzara desloca o foco do tema do “controle” para o “cuidado”, e, é a partir desta clivagem que amplia o escopo da sua análise introduzindo o que considera ao duas macro visões alternativas e suas distintas relações com o “cuidado”:
“[…]por um lado, uma linha que poderíamos definir como malthusiana (ou inspirada num darwinismo social), bem exemplificada no eixo Johnson-Trump-Bolsonaro; por outro, uma linha que aponta para a requalificação da saúde pública enquanto instrumento fundamental para enfrentar a emergência (e aqui os exemplos, muito diferentes entre si, podem ser a China, a Coreia do Sul e a Itália). No primeiro caso, contabilizam-se os milhares de mortos como uma forma de selecção natural da população; no segundo, por razões maioritariamente contingentes, visa-se «defender a sociedade», recorrendo a níveis variados de autoritarismo e de controlo social.”
No seu esforço na exploração dos possíveis desdobramentos políticos da clivagem acima aludida, nos chama atenção, em especial, a dos militantes sociais para o fato que:
“[…] neste momento, a nível global, está em curso um confronto duríssimo que terá consequências críticas não apenas para o futuro do capitalismo, mas também para as nossas vidas (o que, na verdade, é a mesma coisa).
Desdobramentos políticos esses que, como um legitimo herdeiro do “obrerismo” italiano, imagina ser possível de potencializar por meio dos movimentos sociais:
“[…]Em conclusão, julgo que o ponto de vista aqui proposto permite-nos olhar para a pandemia em curso colocando o foco nos espaços que se abrem para os movimentos, para as lutas sociais e para a própria esquerda […] Estou convicto que, para inverter o sentido actual do «laboratório italiano», devemos começar pela «cura» do comum; e, na situação actual, aproveitar as oportunidades existentes para uma mais ampla política das lutas em tempos de pandemia.
Em outras palavras, para Sandro Mezzara
“[…] a gestão do coronavírus afigura-se como um terreno de conflito crucial; somente a intensificação das lutas sociais (agora e nos próximos meses) poderá abrir espaços de democracia e de «cura» do comum. Isto vale para Itália como para os Estados Unidos.
Mas, para tanto torna-se necessário delinear cenários para um futuro próximo e cujas condições ele esboça nos âmbitos da : i) saúde publica como o revigoramento do valor essencial do sistema de saúde público (ou seja, do direito social à saúde); ii) da educação ameaçada pelo ensino online) e iii) os cuidados, cujo trabalho de assistência continua a recair essencialmente sobre as mulheres, mas como espaços para novas lutas e negociações.
Resumindo, Sandro Mezzara como um legitimo representante do ‘obrerismo’ italiano evidencia que
“[…]estamos perante cenários que revelam terrenos de luta fundamentais e não, seguramente, perante desenvolvimentos lineares governamentais. Do ponto de vista metodológico, parece-me importante começar por aqui.”
Resumindo: Sandro Mezzara nos permite olhar para a pandemia em curso colocando o foco nos espaços que se abrem para as lutas sociais e para a própria esquerda , tendo como foco a«cura» do comum e, mostra as possibilidades de uma ação política progressista que não só aproveita as oportunidades existentes, como amplia o escopo das lutas políticas em tempos de pandemia.
NOTA
[1] Um recorte que no Brasil foi bastante ressaltado por Teich na sua rápida passagem pelo Ministério da Saúde.
BIBLIOGRAFIA
MEZZADRA, Sandro., (2020) Uma Política das Lutas em Tempos de Pandemia.IN Puncton, Caderno #8 (Epidemos) https://bit.ly/3d8apEd
Sandro Mezzadra é professor na Universidade de Bolonha. Os seus estudos concentram-se na história das ideias políticas e na teoria política. Nos últimos anos, tem trabalhado sobre a relação entre globalização, migração e cidadania, teoria pós-colonial, capitalismo contemporâneo, operaismo e autonomismo italiano. Esteve igualmente envolvido na luta pelos direitos dos migrantes, nomeadamente no âmbito do primeiro dia de acção contra a reunião do G-8 em Génova em 2001, dedicado às questões da migração, bem como nos fóruns sociais italianos. Entre as suas publicações, destacamos Direito de Fuga, Lisboa, Unipop 2012, com Brett Neilson, Border as method, or, the multiplication of labor, Duke University Press, 2013; La condizione postcoloniale. Storia e politica nel presente globale, Verona, ombre corte, 2008; La costituzione del sociale. Il pensiero politico e giuridico di Hugo Preuss Il Mulino, Bolonha, 1999.