COVID-19: Uma Aproximação Crítica à Contribuição de Evgeny Morozov by Ihering Guedes Alcoforado
“No momento, somos todos solucionistas. Quando nossas vidas estão em risco, promessas abstratas de emancipação política são bem menos tranquilizadoras do que a promessa de um aplicativo que informa quando é seguro sair de casa. A verdadeira questão é se ainda seremos solucionistas no pós-pandemia.”[EVGENY MOROZOV,2020a]
Evgeny Morozov, autor de “The Dark Side of Internet Freedom”, é um dos mais agudo crítico da instrumentalização das novas tecnologias de informação e cultura e, é, a partir desta perspectiva que ele se debruça sobre a crise do coronavius. Sua chave de leitura é extraída de sua reflexão sobre as estratégias de sobrevivência do capitalismo que, no seu entendimento se articulam em dois blocos: , i) o proativo associado ao neoliberalismo que se orienta pelo encolhimento do orçamento do orçamento público e ii) o reativo vinculado ao solucionismo e que opera a partir do encolhimento da imaginação coletiva. Esses blocos, por sua vez, são mobilizados a partir de supostas cronologias e funções tanto na sua manifestação histórica como na sua expressão analítica: primeiro o neoliberalismo desempenha o papel do policial malvado, depois, o solucionismo faz o papel do policial bonzinho.
A seguir apresento uma visão panorâmica do solucionismo na perspectiva de Evgeny Morozov e, sem seguida, sua aplicação a crise decorrente do COVID-19.
Do Neoliberalismo ao Solucionismo
A originalidade da sua abordagem está na sua análise crítica do solucionismo o qual é escandido em duas alternativas: a) a dos solucionistas progressistas e que se apoia na lógica do “nudedging” e, b) a dos solucionista punitivos que se ancora na infra-estrutura de vigilância do capitalismo digital.
Na sua crítica mais geral do solucionismo, ele chama atenção para o potencial progressista e emancipador das NTICs, por tornar “ mais fácil imaginar um mundo pós-neoliberal — onde a produção seria automatizada e a tecnologia serviria de base para sistemas de Saúde e Educação universais”, criando as condições de possibilidade de emergência de “[…] um mundo em que a abundância seria compartilhada, e não apropriada”, o que no seu entendimento é bloqueado pelo solucionismo.
Para ele, solucionismo é reativo e desarma, desativa e descarta toda alternativa política, além de encolher a imaginação coletiva e, tem como maior objetivo convencer o público de que a forma legítima de uso das tecnologias digitais é perturbar e revolucionar tudo — com exceção da instituição central da vida moderna: o mercado.
E, como se bastasse a fidelidade canina dos solucionistas ao mercado tal como posto, eles adotam um discurso “pós-ideológicas” como justificativa para a difusão de tecnologias que esvaziam a esfera publica e, despolitiza (politics) a política, tendo sempre como telos fazer girar as engrenagens do mercado e, em decorrência a do capitalismo global. As amplas possibilidades de instrumentalização das NTICS cria janelas de oportunidades para os solucionistas apresentarem suas resposta padrão para muitos problemas políticos.
COVID-19: Do Solucionismo ao Estado Solucionista
Diante da crise decorrente do COVID-19, o solucionismo (na sua versão mais simples) “sustenta que como não há alternativas (ou tempo, ou dinheiro), o melhor que podemos fazer é colocar curativos digitais sobre os danos” os quais podem ser comandados, tanto pelos solucionistas progressistas, como pelos solucionistas punitivos:
“Os “solucionistas progressistas” acreditam que a exposição oportuna às informações corretas, por meio de aplicativos, fará as pessoas se comportarem em favor do interesse público. Essa é a lógica do nudging (“cotovelada”), que moldou a desastrosa resposta inicial do Reino Unido frente à crise. Os “solucionistas punitivistas”, pelo contrário, querem usar a vasta infraestrutura de vigilância do capitalismo digital para restringir nossas atividades diárias e punir quaisquer transgressões.[MOROZOV, 2020a]
A despeito das ameaças a privacidade do solucionismo, para Evgeny Morozov, o verdadeiro perigo é que essa crise consagre o kit de ferramentas solucionista como a opção padrão de abordagem de todos os outros problemas existenciais — desde a desigualdade até as mudanças climáticas”, criando as condições para a legitimação de um Estado Solucionista fundado na vigilância que preencha “[…] o vácuo político com práticas antidemocráticas”, em nome não só da segurança epidemiológica, mas também da segurança pública e até mesmo em nome da inovação.
Para Evgeny Morozov, “[…]uma das funções do estado solucionista é desencorajar programadores, hackers e aspirantes a empreendedores a experimentar formas alternativas de organização social”. No universo dos solucionistas o futuro é naturalizado como sendo das startups é não como um resultado político contingente.
Do ponto de vista político, uma preocupação relevante de Evgeny Morozov é com a naturalização do solucionismos start-ups:
“Nessa perspectiva, empreendimentos baseados em tecnologia mais subversivos, que poderiam impulsionar economias solidárias, não baseadas no mercado, morrem no estágio de protótipo.”[MOROZOV, 2020a]
Enquanto que do ponto de vista político sua preocupação decorre do fato que
Afinal de contas, é muito mais fácil utilizar a tecnologia solucionista para influenciar o comportamento humano individualmente do que fazer perguntas políticas complexas sobre a raíz dos problemas que geraram tais crises.[MOROZOV, 2020]
Resumindo, sua resistência ao solucionismo é magnificada porque entende que as respostas solucionistas baseadas em startups diminui nossa imaginação política, ainda que restrinja tal imaginação a capacidade de vislumbrar um mundo sem os gigantes da tecnologia no domínio de nossa infraestrutura política e social.
E, é baseado nesta resistência que ele propõe uma política “pós-solucionista” e, a partir das descontrução do […] binário artificial entre a ágil startup e o ineficiente governo que limita nossos horizontes políticos”, coloca a questão que julga relevante:
“Que instituições precisamos para aproveitar as novas formas de coordenação social e inovação oferecidas pelas tecnologias digitais”.[MOROZOV, 2020a]
Ou seja, ele tem em mente a criação das condições para que se possa reformular profundamente as instituições, incluindo os governos, tal como aconteceu em outro momento histórico com o neoliberalismo.
COVID-19: A Estratégia Pós-Solucionista
Em função do exposto acima, quando se debruça sobre a crise decorrente do COVID-19, e trata das causas da magnificação da crise, elas são vinculadas ao neoliberalismo, enquanto a mitigação e a adequação são creditadas ao solucionismo. De forma que para ele o problema está exatamente na hegemonia do solucionismo e no bloqueio das possibilidades de vislumbrar-se uma alternativa pós-solucionista:
“O debate atual sobre qual a resposta tecnológica correta para o covid-19 parece sufocado precisamente porque não temos nenhuma política pós-solucionista à vista. Ele gira em torno das compensações entre privacidade e saúde pública, por um lado, e em torno da necessidade de promover a inovação por startups, por outro.”
No entendimento de Evgeny Morozov, com a o êxito das estratégias solucionistas no enfrentamento da crise do COVID-19 evidenciou-se “[…] a extrema dependência que as democracias reais têm no exercício do poder privado, não democrático, das plataformas tecnológicas. [MOROZOV, 2020a]
Em função disso ele propõe que “nossa primeira meta deve ser a de traçar um caminho pós-solucionista, que nos dê soberania pública sobre as plataformas digitais.” Soberania essa a ser exercida, segundo ele, de forma a deslocar a ênfase das plataformas na micro-segmentação da publicidade e o correspondente fluxo dos micro-pagamentos dos consumidores, passando a focar no nível macro tendo como referência o comportamento coletivo dos não-consumidores, de forma a desqualificar as plataformas digitais como locais de consumo, requalificando-as como lugares de assistência e de solidariedade mútua.
BIBLIOGRAFIA
MOROZOV, Evgeny., (2020a)O estado de vigilância sobe um nível com soluções tecnológicas para o COVID-19 IN Carta Capital, https://bit.ly/3eoZ0Aa Disponibilizado em 16 de abril de 2020 e consultado em 20 de maio de 2020
MOROZOV, Evgeny., (2020b)Solucionismo, uma nova aposta das elites globais IN Revista IHU On-Line, 26 de abril de 2020, consultado em 29 de maio de 2020https://bit.ly/36TsJPj