BEGINING(2020) Dea Kulumbegashvili: Um Passado Desinvestido de Saudosismo e Memória

Ihering Guedes Alcoforado
3 min readFeb 3, 2021

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IHERING GUEDES ALCOFORADO

Dea Kulumbegashvili no seu filme Begining (2020) nos apresenta uma relação do presente com o passado e futuro, a partir de uma personagem, Jana (Ia Sukhitashvili), que, na sua depressão simboliza uma problemática universal. “Estou a espera de um começo, ou de um final” é a expressão da protagonista que evidencia sua depressão enquanto um sintoma sócio-histórico.

A parcimônia e a lentidão das imagens do registro da depressão de Jana (Ia Sukhitashvili), em uma interpretação ontológica, é o recurso utilizado por Dea Kulumbegashvili para evidenciar a tensão do campo com o extra-campo, onde sem mostrá-lo aloja o essencial do filme: a relação problemática da personagem com o presente, o passado e o futuro.

No campo, a personagem em depressão profunda, um convite a critica de psicanálise aplicada, sintomatiza a problemática do tempo presente,e, assim simboliza a tensão entre “letras mortas” que interdita o futuro por vir. Jana (Ia Sukhitashvili), tal como a Georgia, como já firmamos acima tem uma relação problemática com o presente, o passado e o futuro, o que é expresso de forma incisiva na sua afirmação sobre espera de um começo ou de um final.

A personagem se insere num presente histórico que é regido por “letras mortas” tanto religiosas como institucionais. De um lado, uma religião que não vai aquém nem além de uma deontologia rasteira sem qualquer enraizamento metafísico ou cultural (Testemunhas de Jeová). E, do outro lado, um legado religioso local que, reprimido durante a experiência totalitária URSS perde sua vitalidade e visibilidade, e só consegue se contrapor a nova religiosidade epidérmica pondo a instituição policial “letra-morta” a seu serviço. A personagem também se insere num presente existencial que se expressa na sua relação com David (Rati Oneli) um marido insensível a sua crise existencial depressiva e, que com a culpabilização pelo estupro magnifica seu trauma e sua relação com o tempo presente.

A personagem tem uma relação com passado desinvestido de saudosismo e de memória tanto do pai expresso no diálogo com a mãe, como da Geórgia por meio da representação urbanística que não difere em essência das imagens de Wim Wenders dos subúrbios norte-americano.

A personagem tem uma relação problemática com o futuro sombrio (expresso pelo horizonte da irmã) que a coloca num impasse, cuja saída é a morte do “passado-presente” expresso nas imagens finais da simbolização da morte do caçador e seu retorno a mãe terra e, a morte do “presente-futuro” com o o envenenamento do filho e seu próprio suicídio.

Enfim, Dea Kulumbegashvili com seu filme Begining (2020) articula no extra-campo um mergulho na epiderme do processo de transição da Georgia tradicional, traumatizada pelo totalitarismo soviético, para a Georgia contemporânea, evidenciando uma Georgia que se lança para o futuro sem o devido processamento do seu passado, e, assim, atualiza a grande motivação que potencializa a cinematografia de Andrei Tarkovsky: o abandono da tradição e seus sentimentos profundos em troca dominância dos sentimentos superficiais e epidérmicos de uma modernidade sem densidade cultural e religiosa..

Em função disso pode-se imaginar que Andrei Tarkovsky é para Dea Kulumbegashvili, o que Ozu foi para Wim Wenders. Ou seja, Dea Kulumbegashvili mergulha naquela modernidade que atormentava Andrei Tarkovsky, tal Wim Wenders no seu mergulho nessa modernidade que trafega na epiderme dos sentimentos explora e evidencia o que atormentava a Ozu que com sua representação da transição do Japão tradicional comunitário para o modernismo individualista desenraizado, chamou mostrou uma problemática retomada por Wim Winders.

Resumindo: Uma chave de leitura do filme Begining (2020) de Dea Kulumbegashvili é que Andrei Tarkovsky antecipou uma problemática que Dea Kulumbegashvili põe na tela e no coração e mente do expectador: uma problemática universal que se configura em torno da relação do presente com o passado e o futuro.

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Ihering Guedes Alcoforado

Written by Ihering Guedes Alcoforado

Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal da Bahia.

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