AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA E LIBERDADE ACADÊMICA (Naomar Almeida-Filho)
AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA E LIBERDADE ACADÊMICA 01
Autonomia universitária e liberdade acadêmica tornaram-se assuntos da ordem do dia no Brasil e no mundo hoje, por muitas e sérias razões. Sentidos e implicações desses termos precisam ser pacientemente revisados e discutidos, sobretudo nesta conjuntura brasileira atual dominada por profundo e doloroso retrocesso político-ideológico. Fazê-lo com cuidado, serenidade, profundidade e racionalidade convém a todos nós que somos parte dessa singular comunidade de diálogo que se chama comunidade universitária. Até porque temos enorme responsabilidade perante os segmentos da sociedade que precisam contar com a educação como fator de emancipação, num contexto de desenvolvimento social e humano tão adverso.
Para isso, como fiz para outros temas e em outras oportunidades, vou compartilhar anotações que estou compilando para um ensaio exploratório, numa perspectiva histórico-crítica de análise retórica, com o objetivo de avaliar o impacto de recentes desdobramentos da crise econômica e política nacional sobre a universidade brasileira e sua autonomia institucional e acadêmica. O ponto de partida foi uma comunicação apresentada na Mesa-Redonda “Universidade e Liberdade Acadêmica”, na 71ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, realizada na UFMS, em Campo Grande/MS, em 23/7/2019. Estou trabalhando num texto revisado e ampliado com o material produzido no rico debate que se seguiu, ao qual pretendo agregar pontos levantados nesse processo de abertura do tema à discussão neste foro virtual.
Neste ensaio, tomando como ponto de partida esses dois projetos de educação superior, preliminarmente proponho explorar a evolução conceitual das noções de autonomia universitária e liberdade acadêmica. Para isso, em primeiro lugar, comentarei de modo sintético algumas questões etimológicas e conceituais pertinentes às ideias de liberdade acadêmica, autonomia universitária e correlatos, bem como antecedentes históricos de rupturas político-ideológicas ocorridas no início do Século XIX, quando se estabeleceram modelos de educação superior ajustados à modernidade emergente. Na linha central do argumento, em segundo lugar, pretendo discutir como utopia a ideia de que a universidade é um ente jurídico-político dotado de autonomia institucional e liberdade acadêmica plena. Trata-se aqui da ideia-força da Reforma Humboldt, movimento de introdução da pesquisa científica como uma das missões fundamentais das universidades modernas, fortemente associado à filosofia kantiana e ao Romantismo alemão. Em contraste, proponho avaliar como atópica uma noção peculiar de autonomia institucional interna, axial ao modelo de educação superior da Reforma Cabanis, posteriormente incorporada na reforma bonapartista da educação francesa. Variantes desse modelo de ensino superior baseado em faculdades e escolas superiores autônomas, no qual universidades cumprem um papel meramente nominal, foram adotados em muitos países de cultura latina, inclusive no Brasil.
Na sequência, focalizando o processo de redemocratização do nosso país após o regime militar, examino propostas de regulamentação do princípio constitucional da autonomia universitária, formuladas, criticadas, rejeitadas e esquecidas nas últimas décadas. Como exemplo de uma protopia anunciada, mas não realizada, darei destaque especial ao conjunto de propostas elaboradas no primeiro Governo Lula, particularmente entre 2004 e 2006, quando a questão da autonomia institucional assumiu papel central nas propostas de reforma universitária apresentadas pelo Ministério da Educação que, por motivos adiante analisados, proponho designar como Projeto Tarso Genro. Em continuidade, pretendo avaliar o projeto do governo Bolsonaro que, por razões de marketing político, foi intitulado Future-se, pretensa concessão de autonomia administrativa e financeira às universidades brasileiras condicionada à adoção de modelos empresariais de gestão, num contexto de crise econômica, perversão política e distopia social. Por último, a partir da análise desses movimentos históricos, proponho uma apreciação crítica da condição da universidade como instituição social que, para continuar cumprindo sua missão histórica, precisa rever, atualizar e quiçá recriar conceitos herdados de autonomia e liberdade, autonomia institucional e liberdade acadêmica. Retomar a utopia da universidade autônoma numa nova protopia constitui um desafio pertinente, oportuno e urgente, neste momento em que o avanço do ultra-neoliberalismo ameaça diretamente a existência de instituições universitárias públicas em contextos de crescente mercantilização da educação superior, no Brasil e no mundo.
AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA E LIBERDADE ACADÊMICA 02
Numa perspectiva histórico-crítica de análise retórica, do ponto de vista metodológico, pretendo conformar uma linha argumentativa para a reflexão proposta, recorrendo à série semântica <utopia-atopia-protopia-distopia> como balizamento para uma abordagem analítica orientada por analogias, correspondências, indícios e contrastes.
Utopia é um termo criado por Thomas Morus no início do século XVI para designar uma sociedade perfeita, existente em lugar-nenhum — daí a origem do termo e seus correlatos denotar uma negação do substantivo Grego τόπος, que significa lugar ou espaço (daí topografia, topologia, tópico etc.). Utopia refere-se, portanto, a um lugar que não existe, maravilhoso, mas fantasioso, uma situação ideal, porém impossível, mero objeto de sonho, desejo e motivação.
A expressão “socialismo utópico” foi empregada por Engels (1880) para designar as propostas políticas de Saint-Simon, Fourier e Owen, diferenciando-as do projeto marxista, ainda em formação naquela época, que seria o socialismo científico. Uma formulação propositalmente oposta foi desenvolvida pelo teórico social alemão Karl Manheim, numa obra intitulada Ideologia e Utopia (Mannheim, 1997), propondo o conceito de utopia como resultante de um movimento de superação da ideologia e a ideia de “mentalidade utópica” para designar um perfil psicosociológico capaz de projetar e realizar a transformação política da sociedade.
Numa perspectiva francamente positiva, quase apologética, o termo utopia foi recuperado por Robert Hutchins, ex-Reitor da Universidade de Chicago, para uma reflexão sobre a missão utópica da universidade no sentido de construir uma sociedade industrial avançada que, em sua opinião, demandaria educação superior para todas e todos (Hutchins, 1953). O conceito de utopia e o papel dos movimentos utópicos no campo da educação foi avaliado do ponto de vista histórico, sociológico e pedagógico por Petitat (2016). Iniciativas recentes de retomada dos estudos sobre as utopias distinguem a utopia reativa, mais no registro do escapismo, da utopia criativa, que poderia no limite indicar que, na cultura ocidental, a universidade tem uma missão histórica transversal (ou oculta) de natureza utópica (Cossette-Trudel, 2016).
Na mesma linhagem etimológica, atopia é um neologismo médico recente (início do século XX) que designa lesão sem localização típica, efeito produzido por processos sistêmicos, sintoma que pode emergir em qualquer parte ou órgão do corpo, como nas hiper-sensibilidades de base alérgica. O termo atopia (ατοπια) etimologicamente implica uma forma alternativa de negação do topos, denotando um fato “sem-lugar”, “fora-de-lugar” ou “em qualquer lugar”; seu uso remete ao sentido de “excêntrico”, “estranho”, bizarro. Foi cunhado pelo filólogo Edward Perry, professor de Grego da Universidade Columbia, a pedido dos dermatologistas Arthur Coca e Robert Cooke para designar o que veio a se chamar de “dermatite atópica” (Leite, Leite & Costa, 2007). Proponho aqui seu emprego, por pura analogia, para designar uma distorção (ou lesão) indeterminada e radical numa dada conjuntura, trajetória ou panorama histórico.
Por outro lado, o termo protopia também configura um neologismo, só que proposto mais recentemente. Recuperando a proposição manheimiana, protopia significa movimento proativo para execução de alguma proposta de criação ou transformação profunda de uma dada realidade; num certo sentido, protopia se refere a projetos realistas e viáveis visando à concretização de uma utopia. Utilizei-o como fecho para uma coletânea de textos críticos e esperançosos sobre o futuro da universidade brasileira que escrevi no contexto do REUNI (Almeida Filho, 2007, p. 167), onde propus adotar a palavra protopia no sentido de
“proposta provocadora, realista, viável, portanto realizável; […] movimento assumidamente desejante, mobilizador, histórico (no sentido de operado pela ação humana). Por tudo isso, proponho chamá-la de protopia. Ao neologismo se aplica a mesma lógica etimológica do termo utopia. Mas atenção: no lugar da negação, do vazio, temos o prefixo pro, a favor de, na direção de, atuante (como em “pro-ativo”).”
O termo protopia foi posteriormente incorporado às discussões mais recentes sobre mundo virtual, ciberpolítica e futurologia por Kevin Kelly, influente fundador da revista Wired, num post em The Technium (2011):
“nosso destino não é nem utopia nem distopia nem status quo, mas protopia. A protopia é um estado melhor hoje do que ontem, embora possa ser apenas um pouco melhor. A protopia é muito mais difícil de visualizar. Como uma protopia contém tantos novos problemas quanto novos benefícios, essa complexa interação de trabalho e ruptura é de difícil previsão. […] Hoje nos tornamos tão conscientes das desvantagens das inovações e tão desapontados com as promessas das utopias do passado, que agora achamos difícil acreditar mesmo em protopia — que amanhã será melhor do que hoje.”
A palavra distopia foi utilizada pela primeira vez por John Stuart Mill em 1868, num discurso irônico endereçado ao Parlamento britânico, demonstrando ceticismo frente a propostas de reforma agrária sem transformação da base econômica que, de tão utópicas, inevitavelmente se fariam “distópicas”. O termo tem alcançado grande difusão na literatura de ficção científica ao caracterizar cenários catastróficos de mundos futuros ou distantes, onde se verificam destruição generalizada, caos social, mal-estar, sofrimento e desesperança. Na esteira de A Máquina do Tempo de H.G. Wells (publicado em 1895), de Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley (de 1932) e de 1984, obra-prima de George Orwell (publicada em 1948), peças literárias sobre ambientes persecutórios, contextos fascistóides ou regimes totalitários, caracterizados por perversão de valores, violência, suspeita e opressão, tornaram-se paradigmas de distopias sociais (Ashley, 2016). No cinema, inúmeros roteiros foram adaptados de livros e contos que retratam cenários distópicos mais ou menos sombrios e cruéis, como o clássico Blade Runner (1982), de Ridley Scott, além de filmes representativos de distopias políticas que foram produzidos originalmente para o cinema, como o magistral Brazil (1985), concebido e dirigido por Terry Gilliam.
AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA E LIBERDADE ACADÊMICA 03
Para melhor orientar essa discussão e enriquecer reflexões tão necessárias quanto urgentes, precisamos antes rever brevemente alguns antecedentes históricos da Universidade, essa instituição milenar de conhecimento que se tornou patrimônio da humanidade.
Instituídas na época medieval tardia, universidades faziam parte de um sistema institucional vinculado à Igreja Católica Romana, com a missão de promover, guardar e proteger a cultura greco-cristã estruturante do ocidente europeu (Ridder-Symoens, 2004). Nessa fase, sob a proteção do Papado e sua poderosa rede episcopal, foram desenvolvidas formas peculiares de autonomia política frente a soberanos e senhores feudais. As universidades tinham governos e tribunais independentes, polícia própria e até cadeias para estudantes libertinos e brigões. O estatuto especial de autonomia das universidades medievais é descrito com precisão por Durham (1989, p.3):
“A diferença fundamental entre as universidades e as escolas das catedrais, que as antecedem, é que as universidades não são instituições eclesiásticas. Também não são órgãos do poder civil. São propriamente instituições da sociedade, reconhecidas pelo Imperador ou pela Igreja. Assim, a construção da universidade implicou a luta por um espaço de autonomia que envolveu sempre uma complexa relação com os poderes constituídos.”
No Século XVI, cismas religiosos romperam o vínculo de várias universidades com o Vaticano, principalmente aquelas situadas no centro-norte europeu. Isso deu início a um processo de gradual secularização, desigual em distintas regiões e territórios, que, em certa medida, ainda prossegue em vários contextos institucionais (Gascoigne, 1998). Assim, o conceito de autonomia dessas instituições modificou-se no que se refere à fonte de proteção política e militar, a partir de então repassada para nobres, príncipes e reis que se tornaram patronos de universidades nos territórios sob seu domínio.
Somente após o Renascimento, a Universidade prioriza sua missão pedagógica e se reinventa como instituição formadora de quadros intelectuais e profissionais. Nesse momento, a questão da autonomia com liberdade acadêmica aparece historicamente vinculada a dois projetos antagônicos de educação superior que se consolidaram no Iluminismo (Anderson, 2004). Para um desses projetos, a universidade deve ser lugar de produção de verdades e de formação de produtores de conhecimento (tecnocientífico), num momento crucial de emergência das primeiras formas industriais de produção. No outro projeto, a educação superior aparece como dispositivo institucional destinado à formação de quadros políticos, burocráticos e técnicos para a organização do Estado moderno e para o desenvolvimento econômico, num momento de expansão e consolidação do capitalismo mercantil.
O princípio definidor do primeiro projeto toma a Ciência como a forma mais avançada — e única portadora de validade e legitimidade — para produção de conhecimento nas sociedades modernas. O segundo projeto tem como fundamento o princípio de que a Educação constitui direito fundamental da pessoa humana na medida em que seria matriz de todos os direitos capazes de garantir equidade nas sociedades modernas.
Neste ensaio, tomando como ponto de partida esses dois projetos de educação superior, preliminarmente proponho explorar a evolução conceitual das noções de autonomia universitária e liberdade acadêmica.
IV