AUTOMÓVEIS E ACIDENTES NO BRASIL: Uma Aproximação Histórica Institucional (Iherring Guedes Alcoforado)
No surgimento da indústria automotiva no Brasil era muito comum os acidentes por falhas técnicas, a exemplo da quebra da barra de direção, de forma que se tornou necessário um agasalhamento institucional deste novo artefato sociotécnico, o que se deu por duas medidas tendo como premissa que o risco de tais acidentes era inerente ao próprio artefato.
A primeira medida foi a aplicação do instituto da responsabilidade objetiva sem culpa, isto é, foi estabelecido a priori uma imunidade generalizada para todos os motoristas que até hoje podem matar que não são responsabilizados nem civilmente nem criminalmente, a despeito que os acidentes de hoje não são mais na sua grande maioria, decorrentes de causas técnicas, a exemplo da quebra da barra da direção, mas de causas humanas, tais como excesso de velocidade, ultrapassagem irregular e embriaguez, ou seja, as causas atuais dos acidentes automobilísticos não as originárias que justificaram o referido regime de responsabilidade, o que é indicio de sua obsolescência
A segunda medida foi o seguro obrigatório visou a desresponsabilização civil, a partir do qual a vítima é impedida de demandar uma indenização ao motorista responsável (sem culpa), restando a alternativa de acionar o DPVAT, uma “seguradora estatal” operada via um cartório de seguradoras privadas que tem como clientes todos os proprietários de automóveis no Brasil e, de cuja eficiência e eficácia é uma incógnita.
Com isso se estabeleceu um mega incentivo não só a industria automobilística, a ponto de Orlando Gomes afirmar que tal ambiente institucional foi determinante para o sucesso da sua implantação no Brasil; mas também, e aqui sou eu quem afirmo, um mega incentivo por meio da desresponsabilização criminal (responsabilidade sem culpa) e civil (, maseguro obrigatório) a carnificina medida em milhões de vida ceifadas no Brasil.
A alteração deste quadro dantesco tem se dado de forma bem tímida. O primeiro passo foi a Lei Sêca que não pune o criminoso, mas apenas desincentiva o motorista dirigir embriagado, ou seja, o ato criminoso permanece sem culpa.
Agora temos a extinção do DPVAT o que implica num primeiro plano apenas a extinção de uma “estatal” capturada por agentes privados. mas que a depender da sua regulação pode ter implicações institucionais mais profunda, a exemplo da responsabilização civil dos motoristas causadores dos acidentes, estabelecendo uma mudança radical na nossa jurisprudência no âmbito da responsabilidade.
Em função disso seria prudente que a extinção do DPVAT, uma agência capturada por agentes privados que operam com a lógica do rent-seeking, preserve a obrigatoriedade do seguro e a desresponsabilização civil, com a diferença que as apólices passariam a ser comercializadas via um mercado livre. Mas, para tanto é necessário mobilizar o que Nestor Duarte nomeou como “um estado de espírito e de convicção que precede o destino e marcha de uma proposição no parlamento”. De forma que espero que a apólice continue sendo obrigatória e transacionada no mercado segurador, a exemplo do seguro obrigatório exigido dos turistas na Europa.
Enfim, no meu entendimento o que se anuncia é o primeiro passo na privatização de um mega mercado de seguro cuja clientela envolve todos os proprietários de auto no Brasil e que pode ser operado de forma altamente competitiva sem as restrições da administração direta do setor público.
Uma iniciativa emblemática do que nomeio de “austeridade popular” de Paulo Guedes, a partir da qual se pode esperar que aumente os custos das apólices em decorrência não da falta de concorrência, mas de uma tributação progressiva, de forma a internalizar as externalidades negativas intra e inter setorial da automobilidade, gerando recursos para financiamento do transporte público de massa.
Por fim, o seguro obrigatória é apenas a ponta do iceberg de uma problemática mais ampla, ou seja, resta o desafio de desmontar os mecanismos de incentivo a carnificina que o setor de transporte promove no Brasil e, para tanto acredito que a Law and Economics cultivada por Guido Calabresi que, cada vez mais se apoia na Economia comportamental poderá fornecer o framework que nos permitirá entender e modelar o problema, criando as condições para que se possa desenhar política eficientes e efetivas de redução dos acidentes. Enfim um desafio e tanto para os policymakers atuantes no campo.